O CENSOR

12/04/2024 16:14 - Artigos
Por Crônica - Jeno Oliveira
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O estilo, a forma, o desenho, a singularidade, o humor, o tino, o desfecho, a cara eterna de vovó fofinha. Viveu nove décadas e mesmo assim deixou um vácuo literário profundo. Sua longa existência terrestre, considerando os propósitos e cursos biológicos naturais, parece não ter sido suficiente. Arranjos, frases, conglomerados de pensamentos insubstituíveis e sutilmente inteligentes. Ácidos, muitas vezes. O que pensa uma garota de vinte anos? Quem ela acha que é para com tão pouca idade escrever O Quinze? “Conversa de política” é de longe minha crônica preferida até segunda ordem. Raquel de Queiroz, a quem devo minha paixão por este estilo literário de narrações muitas vezes improdutivas, era, no fundo, no fundo, uma crítica social, preocupada, sobretudo, com a falta de água nas torneiras do nordestino.

 

Foi presa e censurada pelo Getúlio – o pai dos pobres e da consolidação das leis do trabalho, inspirada na carta fascista de Mussolini. Nunca vi um liberal ou um conservador defendê-la – a consolidação - mas alguns filhos do barbudo exdruxulo de Tréveris insistem em colocá-lo – o pai dos pobres - no espectro oposto. Outros, é bem verdade, o veneram até os dias de hoje. Raquel – que foi a primeira mulher a entrar na academia brasileira de letras - o odiava.

 

As pessoas devem mesmo escancarar com abundância e liberdade os seus pensamentos e opiniões. Foi para isto que criaram os festivais de música de 1967 e tantas outras resistências contra o controle intelectual e artístico. Caetano, Chico, Gil, todos tão jovens exalando múltiplas e condecorosas virtudes. Todos tão fielmente comprometidos com essa coisa de dizer o que vem na telha. Por onde habitam? Também tinha o Vandré. Cadê o Vandré, o Geraldo, e toda aquela geração que gritava é proibido, proibir? O Vandré morreu, dizem, pois agora ele assumiu outro nome. Agora é Geraldo Pedrosa. Li um dia desses que a canção Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores) ficou em segundo lugar do III Festival Internacional da Canção da TV Globo. A vencedora foi "Sabiá", de Chico Buarque e Tom Jobim — mas a decisão foi vaiada pelo público, que exigia que o prêmio fosse para Vandré. Se lá eu estivesse, tinha feito o mesmo. Sabiá é de fato, uma canção sem sal e sem sombra.

 

Carimbaram – com justiça - a palavra mais feia do planeta terra nos 21 anos de ditadura militar. Existe palavra mais feia que censura? Castelo Branco, o amigo irmão de Raquel, dizia que ditadura é de longe a mais feia. Ironicamente foi em seu governo, que criaram a Lei nº 5.250 – conhecida como Lei de Censura à Imprensa e que, posteriormente se desdobrou para Censura Prévia, em 1970. Pintaram o demônio e o convidaram para tomar chá no palácio do Catete.

 

Acordamos alguns muitos anos depois anos depois com um Brasil envolvido em uma ampla recessão à liberdade de expressão. O censor voltou com gosto de gás e de toga preta, num luto excessivo. Nem na didatura militar, que tinha restrições muito mais moralista do que política, algo parecido aconteceu. Até os teólogos da libertação publicavam seus livros livremente. Afinal, em qual país democrático se prende pessoas por pensamentos e opiniões em redes sociais? Sem o devido processo legal e sem a amplíssima defesa? Como Raquel dizia: cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado. A propósito: tem figura mais abjeta e mais execrável que um censor?

 

Maceió, 10 de abril de 2024.

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