DATA ROUBADA

26/04/2024 15:20 - Artigos
Por Jeno Oliveira
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O ano, a letra, o contexto. Dificilmente ele ratava. Elencava com propriedade os personagens envolvidos na letra. Um a um. Emprestou o livro banido das livrarias pelo próprio biografado a um colega de ocasião, que nunca mais o devolveu e descobriu-se depois que partiu desta para melhor um dia desses – que Jesus em sua infinita bondade ampare sua alma. O livro de muitas folhas e segredos tornou-se artigo de luxo de um dia para o outro. Uma raridade literária indisponível. Nele, contava-se detalhes do menino que perdeu parte da perna em um acidente de trem em Cachoeiro do Meirim, sua terra natal – lá nas montanhas do Espírito Santo. Dizem alguns doutores da mente que sua dor física transformou-se em profundas canções da alma; anos mais tarde – para sorte de várias gerações brasileiras, diga-se de passagem.

Lá pelas tantas, quando a cerveja batia no esfíncter e desembocava na garganta, muitos pediam para ele interpretar a letra. “Interpetre aí”, diziam as vozes pausadas pelo efeito etílico. No dia 19 de abril, ninguem se lembrava dos primeiros habitantes do Brasil. Nada se falava sobre os aruaks, karibs, macro-jês ou tupis-guaranis. Só a data natalícia do rei importava. Nunca tinha bolo ou essas bobagens de mesas decoradas, balões coloridos, docinhos açucarados; mas sempre tinha uma galinha de capoeira, um pato cozido, uma guiné adolescente na panela ou um cordeiro na brasa. Música? Só as do Roberto. Nem que fosse “amapola” – mas só as dele era permitido.

Em 1977, no ano em que eu nascia e o Elvis morria, Roberto Carlos lançava nada mais e nada menos que “Cavalgada”, “Falando sério”, “Nosso amor”, “Ternura”, “Jovens tarde de domingo”, “Não se esqueça de mim”, e por último “Amigo”. Toda esta obra em um único LP. Era um sinal de que eu precisava envelhecer depressa. Quando completei um aninho de idade, o rei gravou “Café da manhã”, “Lady Laura”, “A primeira vez”, “Vivendo por viver”. Ou seja, já tinha todo o direito de pendurar as chuteiras. A cada novo vinil, o Brasil se reencontrava. Essas e outras tantas belíssimas canções eu aprendi alguns anos depois, em minha boêmia juventude discreta, graças ao tio Marcos, que se despediu do mundo nos deixando algumas lições valiosas – a de nunca nivelar a música por baixo foi uma delas.

Ninguém se atrevia a compará-lo com outro. Não perto dele. Observe os instrumentos!? Estão anos luz abaixo da voz. Colocava uma camisa azul de manga comprida para agradá-lo. Vestia-se como se fosse a um baile. Brindava serenemente sua saúde e sua voz, que segundo ele, melhorava a cada ano. As pernas miúdas cruzadas, o cigarro nos dedos curtos, os lisos cabelos penteados, o pano de prato forrado sobre a mesa e sua gagueira charmosa, fazendo questão de comentar as frases de amor como se as ouvissem pela primeira vez. Não se sabe ao certo qual dos dois eram mais tímidos.

Conhece-se muito de uma pessoa pelas coisas que ela admira. Como no Brasil do século XXI passou-se a admirar o inadmirável, a contemplar o não talento e a vislumbrar o não vislumbrável, o dia do índio deixou de ser uma mera data comemorativa para se tornar a segunda data do calendário anual mais importante para ele, perdendo apenas para o 28 de junho – dia de São Pedro e de seu próprio aniversário. E o pior de tudo é que nem de índio o tio Marcos gostava.

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