Só os loucos são inteiramente livres.

Para os "normais", assim entendidos, o olhar do outro é o maior e mais definitivo inibidor de comportamentos, jeitos e gestos. E rapidamente se infiltra em nós, ocupando a alma, exatamente no território onde mora e trabalha o mais duro julgador que alguém pode ter.

Os loucos, eis a grande vantagem, são imunes a esse olhar perscrutador, que censura, que enxerga mais longe do que imagina nossa vã filosofia. O danado é quando, ato contínuo, ele define que é, sim, o que apenas parece ser. Mas isso é outra história.

A Doidançarina, como silenciosamente a chamo, é uma dessas felizardas do alheamento ao que vem de fora (ou de baixo, talvez seja o caso). Ela, de fato, desconhece essas amarras corriqueiras, ainda que poderosas para a maioria, e vai seguindo a cada dia do jeito que lhe dá na telha (e não discuto, aqui, a qualidade da cobertura).

É sempre assim: ela vem avançando algo veloz no corredor do Murilópolis, breca de vez, faz alguns passos de dança que me parecem estranhos (street dance?), mas com muita ginga, e volta a correr alguns segundos depois, celeremente, até a próxima parada.

O leitor e leitora pode concluir, porque verdadeiro, que nas minhas observações matinais sobre caminhantes e corredores identifico tipos diversos. Até eu sou um desses tipos - louco manso, imagino: cultuo, desde a infância, um hábito de que gosto muito, mesmo que pareça excêntrico para a maioria - ando cantando, e não apenas ao amanhecer. 

Faço isso nas compras de supermercados, nas ruas e por onde sigo, quando apressado ou quando simplesmente vou. Creio que é uma maneira de curtir uma boa companhia – não a minha própria, de quem me canso tantas vezes -, mas a da canção da hora, sempre escolhida pelo afeto. 

A primeira vez que vi a personagem, minha perplexidade interior deu o grito: 

- Tá doida! 

Mas ela mesma tratou de refazer o meu entendimento, de maneira simples e objetiva: repetindo, graciosamente, o seu balé tão particular, num salão inaudito - e a plateia que se lixe! Aquela alegria manifestada é ela, apenas ela, manhã cedo – coisa rara! -, no seu jeito de lidar com o mundo dos homens. O do lado de fora - por dentro, é claro, está bem resolvida. 

A diversidade também mora naquele “bioma”: tem gente que anda rezando, terço na mão; outros que falam sozinhos e até reclamam; e há também aqueles que parecem tão presos numa carapaça protetora que nos inspiram se não medo, uma exigência de distância regulamentar sem nenhum cumprimento – é deixa seguir. 

É natural que ao nos vermos todos os dias, praticamente, os caminhantes e corredores do Murilópolis passem a desejar “bom dia” a cada um (a) com quem cruza no caminho. Não é o caso da Doidançarina, que sempre está com a cabeça comprimida por um headphone bem exuberante, de onde escapam alguns acordes da música que a embala.

Se me parece feliz?
 
Eu não diria o contrário.  

Acho que qualquer um de nós há de ter o seu tempo ou momento de “maluco beleza”. Pergunto-me o que eu faria (farei) no meu, quando e se ele viesse e se estabelecer, sem medo e sem freios?

Cá para nós, acho que a loucura não planeja a vivência da liberdade - simplesmente a vive.