Há alguns anos, viajei para o Recife, ao lado de minha mulher, num sábado de carnaval. Logo pela manhã, pegamos um avião que nos fez passar por alguns dos piores momentos de nossas vidas: durante mais de meia hora, o que nos pareceu uma eternidade, o aparelho balançou como se tivesse tremor essencial (algo como Mal de Parkinson) em estado bastante avançado.

Do aeroporto da capital pernambucana, fomos direto para um camarote do Galo da Madrugada, no Centro do Recife. O desfile de uma das glórias culturais do estado vizinho já havia começado. Claro: a nossa expectativa era grande, afinal nós só íamos ver por dentro “o maior bloco carnavalesco do mundo”, que conhecíamos apenas pela televisão. Finalmente, estávamos no meio da folia.

Eis que o primeiro trio elétrico a passar pelo local, tão logo chegamos, espalhava os agudos lancinantes de Joelma, do Calypso: “Nada menos carnavalesco”, pensei, mas não falei. Até porque estava cercado por apaixonados recifenses, já sabedores de que por esses tempos não há mais espaço para “pureza” - sem dinheiro não há negócio.

O que aconteceu com as festas de São João se repete nos carnavais: a música de época vai deixando de existir e dando lugar ao que já toca o ano inteiro. Pior para mim: o breganejo, que é o estilo mais ouvido “do Oiapoque ao Chuí”, diriam os d’antanho (eu, inclusive), tomou conta dos espaços públicos, gratuitos ou pagos, espalhando sofrimento e dor (segundo as suas “letras”).

Que fique claro: isso é uma constatação, não uma queixa. O mundo gira e o ponto em que estamos é aonde não chegamos: o que para uns (para mim) é só mau gosto virou o gosto médio (que para Ariano Suassuna faz mais mal à cultura do que o próprio mau gosto), mas eu sempre terei a chance de escolher o que quero e vou ouvir.

Constato que hoje no carnaval das grandes capitais as marchinhas ainda dividirem tempo/espaço com o funk, o rock, o breganejo e por aí segue. É a diversidade, dirão; é a diversidade, direi - respeitosamente e ausente. Na Bahia, o frevo de há muito perdeu a posição hegemônica nos carnavais de rua, e o Trio Elétrico de Dodô e Osmar virou apenas uma saudade, distante e ofegante, desfilando como um museu ambulante. E olha que Gil, Caetano e Moraes Moreira compuseram frevos inesquecíveis e belos - não faz muito tempo.  

Por aqui, o Pinto da Madrugada mantém ainda a tradição do frevo e das marchinhas, mesmo que a um preço muito alto (R$ 1 milhão, da prefeitura de Maceió, este ano!), no desfile à beira-mar que se repete uma semana antes do carnaval.

Cada tempo com os seus ventos e contratempos. E à história cabe o registro daquilo que virou passado, independentemente do gosto do freguês. Na primeira metade do século passado, por exemplo, os concursos de música carnavalesca decidiam o que seria sucesso no reinado de momo a seguir (pergunta: Rei Momo ainda pode ser gordo?). 

E dava confusão das brabas.

Em 1936, Noel Rosa saiu pagando geral porque sua música (em parceria com Heitor dos Prazeres) Pierrot Apaixonado não venceu uma dessas disputas:

- Acho que as músicas não são julgadas por técnicos, mas por cronistas esportivos, que comparecem por puro esporte, razão pela qual, muitas vezes, o concurso termina em luta de boxe e de capoeira.

Bom humor e ironia – mesmo assim, protesto registrado.

Nem sempre os preferidos dos jurados conquistavam o coração do público – o Pierrot... ainda é lembrado até hoje, ainda que só por alguns poucos, que deixarão seu lugar no mundo para os pesquisadores da cultura popular.

Sucesso mesmo, entretanto, quem fez – no mesmo ano – foi o pilarense José Rodrigues Calazans, o Jararaca. Estreou cantando com a sua inapagável Mamãe eu quero, uma das músicas brasileiras mais tocadas no mundo inteiro até hoje. 

Ele só conseguiu registrar sua voz no acetato, aliás, graças à intervenção do Almirante (Henrique Foréis Domingues), “a maior patente do rádio”, que impôs a sua autoridade ao Estúdio Odeon, onde não se admitia a gravação daquela “bobagem”.

O poderoso selo teve de voltar atrás e ainda engolir o diálogo de abertura, gravado junto com a marchinha, entre Jararaca e Almirante:

- Jararaca: - Mamãe, eu quero...

- Almirante: - Qué o quê, meu filho?

- Jararaca: - Mamãe, eu quero ir pras avenidas.

- Almirante: - Qué o que, menino?

- Jararaca: - Mamãe, eu quero entrar nos cordão.

- Almirante: Você vai é entrar na lenha!

Não entrou: caiu no gosto no povo e foi abraçado pela memória de alguns e pela história, que enxerga doçura e ingenuidade no bicho peçonhento.