No dia de Nossa Senhora da Conceição, quando esta crônica de saudade for publicada, provavelmente eu já esteja entre meus amigos de infância, sentado sobre uma mesa de madeira boa, recebendo brisa no rosto, tomando cerveja gelada, comendo carne assada e conversando frivolidades sobre os tempos remotos e atuais. Os hodiernos se concentram nos primeiros minutos no racha de futebol que antecede os comes e bebes de nosso habitual e generoso encontro anual. “Levou uma canetada”. “Fulano não joga mais nada”. “Cicrano ainda bate uma bolinha”. “Esse tá morto”. “Aquele nunca foi bom de bola” e por aí vai.

Em 1980, quando os muros das casas ainda tinham um metro, as ruas em paralelepípedos, amendoeiras e pés de coqueiros ainda miúdos e um mar virgem e praticamente inexplorado, Jacarecica dava-se no imaginário como o último bairro de Maceió pelo lado norte da cidade. De Jacarecica ao Pontal, dizia uma música de sucesso dos anos 90. De um lado o atlântico azul e dos outros uma mata verde e inabitada cercava o bairro recém-construído e por hora subestimado.

Aos poucos ele foi se habitando, os muros crescendo, as casas praticamente iguais tomando formas diferentes, as amendoeiras emprestando sombras pródigas e a civilização se impondo, sobretudo, nos sábados e domingos de sol. Na barraca Tropicana, a mais cobiçada entre as três que haviam, tirávamos o sal que insistia em adormecer dentro dos bolsos ou das cuecas coloridas de algodão, com a água do poço que desce da serra até os dias de hoje. Na quadra de cimento cru, construída na orla e arrodeada por coqueiros e restingas verdes, protagonizávamos um clássico de futebol memorável. Conjunto 1 contra o conjunto 2 – basicamente. O jogo era tão acirrado que dificilmente acabava sem um couro do dedão do pé arrancado, um joelho ralado, um cotovelo ensanguentado ou uma boa briga de menino suado.

No início dos anos 90, um pouco antes da puberdade chegar, construíamos o roteiro de nossas tardes sinalizada pela maré. Tudo dependia da maré. Antes de subir os quatro degraus do morrinho da orla, o frio invadia a barriga, o pescoço se esticava e a sobrancelha se erguia para certificar se o racha seria na areia da praia ou na rua calçada. Quando a areia era muita e plana, o coração se regozijava e instintivamente ia chegando um a um e logo éramos mais de 30. Nos comunicávamos por telepatia. No gol da lua, geralmente ela – a lua- já tinha dado o ar de sua graça e imperava em um céu quase escuro. Éramos incansáveis.

Após o jantar o destino era novamente a rua e nos reuníamos em uma esquina qualquer: jogo de botão, polícia e ladrão, porta bandeira, chimbra, queimado, o futebol de sempre e mais tarde um pouquinho, juntávamos uns trocados para ver os seios de alguma empregada doméstica saliente e desprovida de vaidade. Para tocá-los, só se tivesse coragem de investir a mesada do mês. Depois vieram os “assaltos”, o rosto colado, a quadrilha, o surfe, o rock dos Guns N’ Roses, o axé do Bel, o forró eletrônico, as micaretas, as paixões incorrespondidas e os desígnios distintos e distantes.

Dali extraiu-se quase tudo. O primeiro mergulho, o gosto de sal, o olho ardido, o gol festejado, o medo da onda, o de morrer afogado, dos dentes do Huck – o pastor alemão do seu Rui - do drible combinado, o murro tomado, o tapa acertado, a carreira, o grito, a dança negada, o acorde bem dado, o beijo molhado, a música repetida, o cigarro fumado, o Pink Floyd, o Paulo Diniz, o Roberto Carlos e anos depois o pagode. Ah o pagode! Quando chega o verão e o mar fica ainda mais cristalino e azul, as lembranças ficam ainda mais cristalinas e azulejam a saudade. Quando dá, sempre que posso subo o morrinho da orla para observar a maré. Quando tem areia sobrando, fico imaginado os amigos chegando. Uma a um! Que bom que ainda posso aproveitá-los. Nem que seja uma vez por ano.

 

Crônica – Jeno Oliveira

Maceió, 05 de dezembro de 2023.