Lula: uma biografia necessária

26/12/2021 09:03 - Fábio Guedes
Por redação
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Em 2022 o Brasil se reencontrará com as urnas nas eleições presidenciais. Será um momento decisivo para o futuro do país cantado em verso e prosa como o “País do Futuro”, subtítulo da obra do judeu-austríaco Stefan Zweig, lançada em 1941.

Desde 2016 encaramos uma situação econômica e sobretudo política que desafiará o intelecto dos historiadores e cientistas políticos nos próximos anos.

A luta pelo poder no país promoveu instabilidades que iniciaram quando da terceira eleição vitoriosa do Partido dos Trabalhadores, em 2014. O principal opositor à vencedora Dilma Rousseff, o então senador Aécio Neves, optou pela incitação de seus eleitores em não reconhecer os resultados de sua derrota, tornando o ambiente que já era de grande convulsão política, ainda mais febril.

Não podemos esquecer também que no ano anterior o Brasil foi sacudido pelas mobilizações de junho, que começaram como um movimento pueril, contestando o valor das passagens na cidade de São Paulo, e tomou um rumo inesperado, de forte oposição à classe política, especialmente simbolizada na Presidência da República e Congresso Nacional.

Aos moldes da Primavera Árabe que balançou e ajudou a derrubar governos nos países da África Subsaariana, por aqui “forças ocultas” lideradas pela grande mídia passaram imediatamente à condução política das manifestações, direcionando-as como artilharia pesada contra o governo petista, que já dava sinais de dificuldades diante da avassaladora crise econômica internacional que irradiava da Europa, em 2010, e afetara todos os mercados internacionais, como rescaldo da grave recessão causada pela crise financeira do subprime nos EUA, em 2008.

A eleição de 2014 provocou uma enorme fratura na política brasileira que continua exposta até hoje, porque as forças políticas conservadoras reforçaram ações para alijar do centro do poder o PT e seus aliados mais progressistas. Durante o ano de 2015, armaram a lógica do golpe institucional-jurídico-midiático que misturava a estratégia de “arrancar” a Presidente Dilma Rousseff do Palácio do Planalto e, ao mesmo tempo, bloquear de todas as formas qualquer possibilidade da maior liderança do PT, Luís Inácio Lula da Silva, retornar à presidência. Para isso, servia a campanha de desqualificação no mais elevado nível possível do PT, lhe imputando a pecha do “maior partido corrupto de todos os tempos”. 

Qualquer semelhança com as artimanhas utilizadas para derrubar Getúlio Vargas não é coincidência, pois nesses momentos ganhar o coração e mentes dos extratos da classe média brasileira para fins de golpes políticos é quase sempre muito eficiente, especialmente levantando as bandeiras contra a corrupção e comunismo. Quanto ao primeiro, bandeiras justas, mas quando manipuladas apenas contra um espectro da política, torna-se uma poderosa arma de combate a favor dos grupos que justamente mais se aproveitam do Poder ou de sua proximidade para colher benefícios através de formas não republicanas. 

De 2016 para cá muitas coisas aconteceram e dentre elas algumas merecem destaque: a prisão do então candidato à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva em abril de 2018, quando liderava todas as pesquisas de intenção de votos, sob acusações de processos conduzidos pela Justiça Federal em Curitiba (República de Curitiba, como ficou conhecida) e julgados pelo TRF-4; a sórdida campanha eleitoral que desembocou na eleição ao cargo máximo do executivo nacional, do tradicional político do baixo clero no Congresso Nacional, Jair Messias Bolsonaro; a soltura de Lula, em novembro de 2019, um dia após o Supremo Tribunal Federal ter considerado a prisão em segunda instância inconstitucional; a maior pandemia por coronavírus que a humanidade enfrentou em praticamente dois séculos, que no Brasil foi responsável por mais de 600 mil mortes; a manutenção pelo Supremo Tribunal Federal, em junho de 2021, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro em todos os processos que conduziu contra o ex-presidente Lula, devolvendo seus direitos políticos e permitindo que dispute as eleições de 2022.

Com exceção da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 e suas variantes, todos os demais aspectos acima estão muito bem tratados e narrados, com elevado nível de fidelidade, na nova biografia escrita pelo renomado jornalista Fernando Morais, intitulada Lula, e lançada pela editora Companhia das Letras, em novembro de 2021.

Para quem já conhece o estilo e competência do autor de outras preciosidades como Olga (1985), Chatô, o Rei do Brasil (1994), Corações sujos (2000), A Ilha (2005), Os últimos soldados da Guerra Fria (2011) etc. não se surpreenderá com a qualidade do mais novo trabalho de Morais. Fartamente documentada, a biografia também traz belas imagens e um excelente apêndice, tratando com riqueza de dados e estatísticas o poder da mídia na desconstrução da imagem e tentativa de macular a popularidade do ex-presidente, a partir do arsenal de “guerra” montado pela Operação Lava-Jato.

A grande narrativa é dividida em dezessete capítulos, além do referido apêndice e um posfácio. O interessante é a estrutura montada pelo autor. Geralmente, as biografias iniciam pelos primórdios da vida do biografado. Em Lula, Fernando Morais começa alta rotação, contando sobre a prisão de Lula decretada pelo ex-juiz Sérgio Moro e seus bastidores. Até o sexto capítulo, a biografia nos coloca dentro da Operação Lava-Jato e na perseguição contra o ex-presidente, e seu total desmascaramento a partir das divulgações do site The Intercept Brasil, com o STF praticamente condenando Sérgio Moro como um juiz incorreto e suspeito em todos processos que conduziu, com a clara disposição, ao lado e combinado com parte do Ministério Público Federal, em selecionar seus inimigos e tentar acabar com o Partido dos Trabalhadores, enquanto fazia vista grossa para outros “figurões” da política nacional.

Os seis primeiros capítulos são eletrizantes e ao término, quando se alcança a situação da soltura de Lula, Fernando Morais dá continuidade ao seu texto com uma volta ao passado do Lula metalúrgico, grande agitador político e defensor dos trabalhadores do ABC paulista. Com Lula solto em 2019, a biografia continua com sua prisão em 1980. Do presente ao passado, é assim que Morais organiza a biografia do Lula para mostrar a força humana e capacidade política da maior liderança popular que o Brasil já construiu e um dos maiores Presidentes da República, ao lado de Getúlio Vargas. 

Na riqueza de detalhes trazida pelo livro, é difícil imaginar que algum aspecto importante da vida de Lula tenha ficado de fora, desde o seu convívio com mãe e irmãos, de sua vida sofrida quando criança e adolescente, contada de uma maneira que o leitor se emociona ao se deparar com o nono capítulo, às perdas de pessoas próximas ou de seu núcleo familiar, algumas delas em circunstâncias decisivas de sua vida, como as mortes de seu primeiro filho e primeira esposa, Lourdes, da ex-primeira-dama Marisa Letícia, de seu irmão Vavá e do seu neto Arthur. Mensagens de chats privados no Telegram enviadas ao site The Intercept Brasil, mostram a que ponto algumas de nossas “autoridades” judiciárias, especialmente do Ministério Público Federal, estavam mobilizadas na perseguição ao Lula, pois elas trazem diálogos com conteúdo de ironia e chacota, um completo desrespeito à memória dos mortos e ao luto do ex-presidente.

No último capítulo, Fernando Morais conta como Lula quase abandona a carreira política depois da acachapante derrota eleitoral para o governo de São Paulo, em 1982, que teve como eleito Franco Montoro, do PMDB. Lula ficou em terceiro lugar com apenas 10,7% dos votos válidos, com pouco mais de um milhão e cem mil votos. Só não abandonou a carreira porque o líder cubano Fidel Castro, em um encontro em Cuba, no ano de 1985, lhe fez a seguinte colocação: “Escuta, Lula: desde que a humanidade inventou o voto, inventou as eleições, nenhum trabalhador...repito, nenhum trabalhador nenhum operário, em nenhum lugar do mundo...recebeu um milhão de votos, como aconteceu com você. Se permite a opinião de alguém mais velho e mais experiente, ouça o que estou dizendo: você não tem o direito de abandonar a política. Você não tem o direito de fazer isso com a classe trabalhadora” (p. 398).

Quatro décadas depois, em condições normais de “pressão e temperatura” e a julgar pelo que apontam todas as sérias pesquisas de intenção de votos, praticamente há 9 meses das próximas eleições, Luís Inácio Lula da Silva poderá sentar na cadeira presidencial pela terceira vez e liderar o pais, novamente, em sua cruzada contra a fome, a miséria, a injustiça social, as tentativas de implementar um regime autoritário de governo, e devolver a esperança à milhões de brasileiros de mais empregos e crescimento econômico. 

Os próximos volumes da biografia Lula prometem, pelo que o próprio Fernando Morais indica no posfácio que encerra o primeiro volume. O que virá pela frente certamente abordará a chegada do PT ao centro do poder nacional, as características do seu governo, as idiossincrasias, as relações internacionais estabelecidas alcançando o respeito de parte importante de lideranças mundiais, o golpe institucional-jurídico-midiático praticado em 2016 etc. 

A não ser que o leitor ou leitora tenha criado uma barreira ideológica tão intransponível que não lhe permita ampliar seu espectro de conhecimento, a biografia de Fernando Morais, a propósito de qualquer julgamento moral ou político, é imprescindível para se conhecer um dos homens mais importantes que o Brasil produziu nos séculos XX e XXI.

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