A arte (e o desespero) de ficar em casa

04/04/2020 16:58 - Blog do Celio Gomes
Por Redação
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Como você se sente com a obrigação de ficar em casa? Não é escolha. É uma imposição do Estado. Para muita gente esta tem sido uma travessia perturbadora e até revoltante. Não me refiro ao dado político-ideológico. Esqueçamos, por ora, as sandices e delinquências de Bolsonaro e tudo o que isso representa. O isolamento forçado mexe com algo mais complexo, delicado e mesmo imprevisível. Pelo noticiário, nos relatos de conhecidos e, fundamentalmente, pelo que as redes sociais mostram, o bicho tá pegando.

Não é possível apontar um padrão único de comportamento frente à excepcionalidade que estremece os dias atuais. A região do país, o número de pessoas em casa e a faixa etária dos moradores, entre outros, são fatores determinantes no tipo de reação ao confinamento compulsório. De grupo para grupo, o impacto da novidade deve variar na intensidade e nas consequências.

Falei em “grupos” porque é claro que há semelhanças entre camadas sociais de uma determinada faixa de renda, por exemplo. Do mesmo modo, haverá mais coisas em comum entre pessoas com o mesmo nível de formação escolar. Nada disso é assim matematicamente cem por cento preciso, mas temos sim modelos que se repetem nas respostas à restrição da liberdade. Estão por aí, bem visíveis.

Expostas essas premissas, e feitas as ressalvas necessárias, vamos falar um pouco sobre os tipos de confinados. No telejornalismo, impressiona a avalanche de reportagens sobre como as famílias estão lidando com a ordem para ficar entocadas. Tem de tudo. Como distrair os filhotes. O que fazer para não deixar de falar com os avós. Como os casais encaram o veto ao contato sexual.

São um tanto assustadores os depoimentos de alguns personagens que aparecem na imprensa. Em alguns casos parece até que o cara está à beira de um colapso emocional. Aliás, pensando na saúde mental, nunca se viu tanto psicólogo na TV. Os programas de todos os horários exibem alertas, “dicas” e recomendações para evitar que o banzo destrua a leveza de sua alma. É um drama.

Tédio. Melancolia. Depressão. Com as medidas radicais para enfrentar a Covid-19, um mundo de ideias baixo-astral se impôs na rotina de milhões de pessoas. É por isso que proliferam exemplos de gente a exibir revolta com o prolongamento da quarentena Brasil afora. Os relatos, como falei, são caudalosos e dramáticos nas influentes redes sociais. E não estou falando da bagaceira ideológica.

Apesar da chateação, diz um tipo de confinado, o jeito é se esforçar para aguentar as limitações até quando for necessário. Mas há aqueles que não se conformam de jeito maneira. Estes fazem questão de compartilhar as dores de uma solidão que consideram nada menos que insuportável.

Sem nunca perder de vista a pluralidade das famílias e ajuntamentos, suponho que na contramão dos muito aperreados está a galera da tranquilidade. Não é tudo igual, mas os que se aproximam dessa categoria digamos que estão, apesar de tudo, “de boa”. Nada de sentimentos mórbidos.

Não devemos subestimar as razões e os sentimentos de ninguém numa parada tão difícil. A convivência de pais, filhos, parentes e aderentes, tudo junto numa hora dessas, por certo é atalho para confusão e estresse. Dada a delicadeza do panorama, respeito é requisito obrigatório aqui.

Uma ideia recorrente nesse terremoto é a seguinte: ficar em casa é um saco porque não tem nada pra fazer. Daí aquele tédio e o namoro com sintomas típicos de quem está a caminho da depressão. Jamais entenderei esse raciocínio. Pra mim é o contrário: em casa, há o que fazer para sempre.

Existe também uma fração dos mais indignados que parece contaminada pelo vírus da afetação. Tamanha estridência em alguns casos está mais para o exibicionismo do que para uma genuína agonia. Ricaços e celebridades ignorantes engrossam este supérfluo subcampo antropológico.

E há os verdadeiros poetas que inventam um jeito de enviar ao mundo recados “fora da caixa”. É o caso do cantor e compositor Wado. No Instagram, armado com diferentes tipos de viola, ele faz um passeio por seu repertório fulminante. Pancada e sobriedade se completam na voz e nos acordes.

O mundo lá fora é uma aventura sem fronteiras nem limites. Mas, pensando no poeta William Carlos Williams via José Paulo Paes, ficar em casa é uma arte. Quando essa condição é imposta, porém, aí a coisa muda de figura, e o desespero periga se instalar. Tomara que este não seja o seu caso.

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