“Precariado” – ou as palavras que escreverei

29/02/2020 10:37 - Blog do Celio Gomes
Por Redação
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Eu poderia escrever sobre mais um ataque do presidente da República a uma jornalista. Dessa vez, trata-se de Vera Magalhães, colunista do Estadão e âncora do Roda Viva, na TV Cultura. Para tratar do assunto, poderia ver a live de Bolsonaro, aquela sessão de terror que ele grava semanalmente. É nessa ocasião que o amigão de milicianos fala diretamente ao coração de seus seguidores, também conhecidos como Gado. E teria de checar as palavras do desqualificado, caso fosse rabiscar análise mais abrangente.

O tema de mais um texto também poderia ser a ocupação do Planalto pelos generais de quatro estrelas. Numa demonstração de que está armando uma espécie de blindagem a seu desgoverno, Bolsonaro põe militares em postos estratégicos. A jogada levanta suspeitas quanto aos planos do mandatário. Autogolpe é apenas uma das várias especulações em curso no meio da loucura geral.

Como a democracia está em pauta, talvez devesse escrever sobre as ameaças que rondam o Estado de Direito. Aqui também as variáveis passam por Bolsonaro e todas as mazelas que esse meliante encarna e representa. Dispensaria algumas palavras para abordar o que andam aprontando os filhotes do capitão, sempre armados para destruir qualquer vestígio de civilidade.

Difícil seria escrever sobre o coronavírus – ainda que o assunto tenha invadido todas as manchetes, no Brasil e no mundo. Pra qualquer lugar que se olhe, há uma entrevista coletiva de autoridades explicando, ponto a ponto, detalhe a detalhe, o que devemos fazer pra evitar a contaminação. Nos discursos oficiais, tudo sob controle – aqui o bicho não se cria, garantem secretários e ministros.

Como até agora não registrei nada sobre o Carnaval político na Sapucaí, poderia elogiar o samba da Mangueira. Ou quem sabe fosse mais relevante escrutinar o enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel – que exaltou Elza Soares, provavelmente nossa maior cantora em atividade. Lembrei agora que, no desfile de SP, Paulo Freire deu o campeonato à escola Águia de Ouro. Bolsonaro odiou.

Porque atiro em todas as direções (no sentido figurado naturalmente), escreveria outra vez sobre a maldição do lugar-comum, do clichê, da redundância e da falta de noção no jornalismo esportivo. Parem de falar sobre a “Lei do Ex”. Ao longo de um dia, essa bizarrice apareceu em todos os textos da imprensa alagoana. Na TV Gazeta, então, a coisa chegou ao estado da arte. Parem!

Depois de flanar, durante alguns dias, pela paisagem do litoral sul de Alagoas, seria pertinente escrever que, em algumas situações e localidades, temos a sensação de que o tempo parou. Mas aí seria o blogueiro a se render ao império das ideias feitas. Aliás, uma amiga tem como lema de vida a frase “eu não deixo o tempo parar”. No próximo encontro, perguntarei a ela qual é a mágica.

De volta ao universo da imprensa brasileira, um texto sobre os dilemas do jornalismo na era das fake news seria mais que justificável. A turma da direita extrema não cansa de proclamar a nossa extinção, a dos jornalistas. É o sonho de ouro daqueles que abominam a crítica, a contestação, a divergência. O que fazer então? Além de insistir na escrita plenamente livre, não sou dado a profecias.

Finalmente, entre uma noite de sexta-feira e a madrugada de um sábado, poderia escrever algo sobre o último livro que li, o filme que acabo de assistir ou a trilha sonora de um mestre: o Wado, por exemplo, que redimensiona tudo o que compõe e canta – do Samba ao Rock, da MPB ao Axé, da melancolia ao engajamento típico dos rebeldes. À espera do próximo álbum, vou de Precariado.

Bem... Na verdade poderia escrever sobre tudo e sobre nada, sobre vida e morte, sobre todas as coisas que existem e sobre os mistérios que nos desafiam a cada dia. Mas acho que, no instante agora, não consigo me fixar em nenhum enigma que me leve à palavra incontornável. Devo então guardar as divagações para quando sentir que a linguagem, de repente, encontrou a vertigem.

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