A valentia do promotor pistoleiro de Alagoas

02/01/2020 16:03 - Blog do Celio Gomes
Por Redação
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A noite da virada é de festa. Mesmo que você se tranque em casa, é impossível escapar de alguma zoada em comemoração ao novo ano que vem chegando. Até numa praia distante, por exemplo, há sempre um som alto, gritos de alegria e aquela explosão de fogos. Seus vizinhos e todos os arredores são tomados pelo clima de euforia. É assim no mundo todo. Mas o promotor de justiça Adriano Jorge Correia de Barros Lima (foto) parece discordar dessa celebração universal. Em 31 de dezembro, ele cultiva o silêncio.

Adriano Jorge, um dos doutores do Ministério Público de Alagoas, estava em sua mansão no Aldebaran Beta, em Maceió, quando se sentiu incomodado com o volume do som numa casa vizinha. Em plena festa de fim de ano, a poucas horas da chegada de 2020, o promotor não queria perturbação sonora. Para se livrar do incômodo, o que ele fez? Disparou sua pistola no aparelho.  

Segundo leio na imprensa, o homem atirou nada menos que oito vezes, sem chance de defesa para a pobre aparelhagem que tocava canções inofensivas. Levado à delegacia, ele explicou que já havia solicitado que as pessoas diminuíssem o barulho, mas não fora atendido. Sendo assim, penso eu, ele decidiu agir por conta própria – afinal o valentão é uma autoridade, ora essa! Tem de ser obedecido.

É claro que vou relacionar o caso com o Brasil de Bolsonaro e Sergio Moro. No país dessas autoridades mequetrefes, o que vale é a lei da força bruta, da truculência, da licença para matar. É o país em que o “cidadão de bem” quer o direito de ter uma arma para resolver qualquer parada. Quando esse cidadão conta com o aparato de uma instituição, aí a coisa fica ainda mais perigosa.

De acordo com relato divulgado nos meios de comunicação, Adriano Jorge daria uma entrevista coletiva nesta quinta-feira, mas ele, ao que parece, mudou de ideia. O MP avisou, pela assessoria, que ninguém vai falar nada. O procurador-geral de Justiça, Alfredo Gaspar de Mendonça, limitou-se a uma declaração bem singela, protocolar: “Não compactua com qualquer desvio de conduta”.

Ainda segundo a assessoria, o MP “vai adotar as medidas legais cabíveis ao caso”. Só isso? Para uma entidade sempre tão eloquente no combate a malfeitores, é muito pouco. O próprio MP também assegura que o pistoleiro acidental não vai se pronunciar. Quanta diferença em relação aos episódios que envolvem pessoas comuns, gente que não ostenta títulos, sem blindagem de corporações!

Fosse um qualquer, e uma força-tarefa já estaria naquelas mesas, cheias de microfones, para despejar a verborragia do prendo & arrebento. Sim, porque esta é a escola, o modus operandi dos discípulos de Deltan Dallagnol. Qualquer caso é motivo para um espetacular Power Point. Mas, quando a encrenca envolve um dos seus, o MP adota a frase lacônica. Tem de abafar o troço.

No Brasil de Bolsonaro, os doutores da lei e da ordem não podem passar por certos aborrecimentos – como prestar contas de suas atitudes. Pensou em abuso de autoridade? É isso mesmo, com todas as letras. Nós, a ralé, temos de ficar calados, temos de reverenciar esses paladinos da moralidade alheia. E vejam que o doutor pistoleiro não respeita nem os de sua camada, digamos, financeira.

Se age assim com aqueles que estão em seu patamar social e econômico, imagine se fosse um Zé Mané fazendo zoada além dos muros do Aldebaran! E o chefe do MP, o doutor Alfredo Mendonça, vai ficar calado mesmo? O que houve com o falante algoz da bandidagem? Como diz aquele velho ditado, o bom exemplo começa em casa. O atirador será punido ou foi sumariamente absolvido?

Ah, esses sobrenomes afamados na espoliada Alagoas! Tudo isso daria um romance de García Márquez. As togas, as comendas, a ostentação e os cargos de comando passam de pai pra filho. É tradição que remonta a capitanias, engenhos, usinas e latifúndios. Eis uma de nossas maldições. Não, os tiros do doutor não fazem parte do acaso. Reproduzem uma engrenagem vil e apodrecida.

Termino com algo que foi informado como um mero detalhe, mas que na verdade diz muito sobre essa indignidade: segundo a imprensa, na casa alvejada pelo promotor estavam três mulheres. Pois é! Que história é essa de três mulheres curtindo uma festa, com bebida e som alto? Tinha que aparecer um cabra macho, valente que só ele, para acabar com o abuso. Valentia seletiva. Brasil 2020.

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