A imprensa e os bandidos na TV

12/11/2019 16:44 - Blog do Celio Gomes
Por Redação
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Um apresentador de programa policial na televisão vira fenômeno de audiência. A emissora está longe dos padrões globais, com estrutura mambembe e métodos nada ortodoxos no exercício do “jornalismo”. Seria apenas mais um desses casos típicos em que o sensacionalismo mais bruto serve de escada para a ascensão de uma nova liderança política. Essa é a história de Francisco Wallace Cavalcante de Souza, criador e estrela do Canal Livre, exibido por vários anos na então TV Rio Negro, sediada em Manaus.

A linha do programa, que estreou em 1996, reproduzia o modelo consagrado no que há de pior nesse tipo de atração televisiva. O chamado mundo cão, ali, aparecia inteiro e sem maquiagem. Chacinas, sangue, cabeças cortadas e corpos carbonizados faziam a festa do público, que transformou o apresentador em celebridade amazônica. O sucesso levou Wallace Souza à política.

Ele se elegeu deputado estadual no Amazonas, como campeão de votos em três eleições consecutivas, nas disputas de 1998, 2002 e 2006. De carona, elegeu dois irmãos, um vereador e outro deputado federal. A insanidade disfarçada de jornalismo popular deu à família Souza um poder que geralmente é exclusividade dos caciques profissionais. O plano era alçar voos ainda maiores.

A casa começou cair em 2008, com a prisão de um traficante chamado Moacir Jorge Pereira da Costa, ex-policial militar que trocara a farda pela bandidagem. Ao ser preso, Moa, como era conhecido, revelou uma bomba aos agentes que o pegaram: cometia assassinatos a mando de Wallace Souza, ele mesmo, o paladino que combatia o crime no Canal Livre. Parecia coisa de ficção.

Segundo Moa, o apresentador encomendava homicídios para aumentar a audiência do programa. Como ele mesmo seria o mandante dos crimes, naturalmente suas equipes de reportagem chegavam sempre primeiro aos locais de desova. Tinha sempre material exclusivo, com detalhes que a concorrência jamais poderia descobrir. Após a denúncia, a vida de Souza virou de cabeça pra baixo.

A incrível história que abalou o Amazonas pode ser vista na série Bandidos na TV, produzida pela Netflix. O depoimento do traficante que acusou o deputado deflagrou uma onda de fatos que fazem deste caso, no fim das contas, um mistério sem esclarecimento definitivo. Uma força-tarefa fez de tudo para provar a culpa do apresentador e político, mas acabou sob suspeita de várias ilegalidades.

A polícia usou e abusou de métodos truculentos para obter confissões. Houve prisões claramente ilegais, além de evidências de tortura, até em pessoas sem ligação com qualquer delito. Parentes de investigados, por exemplo, foram submetidos a pressão psicológica e também levados à cadeia.

Num dos lances mais absurdos da força-tarefa, a polícia prendeu uma jornalista que havia trabalhado como produtora, editora e diretora do Canal Livre. Ela ficou mais de três meses num presídio. Era uma forma de obrigá-la a incriminar Wallace Souza. A investigação não conseguiu provar nada contra ela.

No curso das apurações, testemunhas foram mortas após prestarem depoimento. Em outra ponta, no jogo político, a Assembleia Legislativa abriu processo contra o parlamentar. Quando a TV Globo exibiu reportagem no Fantástico sobre o caso, com repercussão internacional, ele perdeu o mandato.

Sem a blindagem da imunidade, Wallace Souza foi preso em 2009. Doente, foi levado a São Paulo para tratamento e acabou morrendo em 2010, aos 52 anos. Moa, que detonou a bagaceira, e depois negou tudo no Tribunal do Júri, morreu em 2017, no massacre ocorrido num presídio de Manaus.

Wallace Souza mandava matar para ganhar audiência na TV? Não sabemos. A polícia não conseguiu provar a escabrosa tese. Pelo que mostra a série, de fato havia bandidos na televisão do Amazonas, mas parte deles estava do lado oficial, incluindo lideranças políticas rivais do apresentador.

Para fechar, ressalto que uma das melhores coisas da série é provocar uma reflexão sobre o trabalho da imprensa. Resta claro que, no desembesto de obter informações, coleguinhas embarcaram na versão policial, sem questionar a pororoca de contradições naquilo tudo. Um perigo mortal.

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