Um trecho de um belíssimo texto dessa mulher tão aguerrida, tão autêntica, tão profundamente profissional, a querida promotora de justiça e dos direitos da criança, Alexandra Beurlen.
(...) R. foi morar nas ruas aos 6 anos de idade.
Pergunto: quem escolhe, aos 6 anos, morar na rua?
Que motivos levam uma criança de 6 anos preferir morar na rua que numa casa?
Costumamos passear nas ruas e olhar com desprezo, irritação e desconforto para as crianças de rua, que nos pedem "esmola", ou que simplesmente têm a ousadia de estar ali.
Quantos de nós já pegou uma criança dessas e acionou algum órgão de proteção?
Quantos acompanhamos, com interesse, o desenrolar de suas histórias?
O que, direta ou indiretamente, fazemos por essas crianças enquanto Estado ou Sociedade?
R. chegou para mim, a primeira vez, aos 12 anos. Não sei quantas vezes foi apreendido. Não sei quantas medidas protetivas e socioeducativas tentamos com ele...
Aos 15, cometeu o primeiro roubo, com violência. Foi internado provisoriamente. Não ia receber sentença de internação. Conhecíamos Rb. bem demais pra isso. Íamos tentar outra alternativa, mais uma vez, embora sem grande chances de sucesso, devíamos isso a ele.
Ele é uma das pessoas mais transparentes que conheci.
Não mente.
Grosso! Meu Deus, como tínhamos que ter paciência com ele!
No cumprimento da internação provisória, cometeu um homicídio contra outro interno que descumpriu as "regras da cadeia".
Confessou, mas não entregou ninguém.
Todos os demais negaram.
Ficou mais de 2 anos interno.
Saiu já maior.
Não sabe ler.
Outro dia, passou pra me ver, limpo e cheiroso.
Demos um abraço gostoso. Como é bom ver as mudanças positivas... dá ânimo pra seguir lutando!
No fim da conversa, eu disse: "tô tão feliz de lhe ver assim! Que bom que veio pedir ajuda!"
Ele me respondeu, grosso como sempre, mas com sorriso de canto de boca (nunca o vi sorrir antes): "Vim só cumprir minha obrigação. Não fique feliz não, porque vim obrigado!", e saiu com a cara abusada de sempre.
Eu ri.
Veio só, da rua, sem mandado de busca.
Veio pra me mostrar que estava limpo e cheiroso.
Está estudando, aprendendo a ler e escrever.
Outro dia pediu um caderno e um lápis.
Continua passando seus dias na rua, mas reencontrou uma irmã, na casa de quem toma banho, troca de roupa e, de vez em quando, dorme. Passou a tê-la como boa referência familiar, coisa que nunca tinha tido. Já fez 21, não o vemos mais, formalmente, mas ele continua bem. Nunca mais usou drogas pesadas ou cometeu crimes.(...)