O texto histórico de Antonio Sapucaia

03/10/2019 15:11 - Blog do Celio Gomes
Por Redação
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Já escrevi aqui sobre a República das Togas, aquele mundo paralelo também conhecido como Poder Judiciário. Por lá, habitam brasileiros com privilégios inimagináveis para o cidadão comum. Rendimentos abusivos e benesses de toda ordem fazem parte da coleção de hábitos incompatíveis com a realidade da maioria da população. A coisa é tão feia que, muitas vezes, temos a impressão de que mudar esse quadro parece até impossível. Poucos têm disposição e coragem para enfrentar essa encrenca. É perigoso. 

A sociedade precisa de um Judiciário forte, sim. Precisa de um Judiciário independente, também sim. A Justiça é garantia essencial no cumprimento da lei para a normalidade da vida democrática – algo que ninguém deve contestar. O que não pode é um Judiciário intocável, acima das obrigações válidas para todos. E é nesse ponto que as coisas estão (e sempre estiveram) fora dos eixos.

Penso no desembargador aposentado Antonio Sapucaia e num capítulo único na trajetória do Judiciário em Alagoas. Em 2003, quando tomou posse como integrante do Tribunal de Justiça, Sapucaia proferiu um discurso que se tornou histórico instantaneamente. É um documento incomparável para se entender esse mundo paralelo a que me referi no começo do texto.

Por um desses acasos da vida, o discurso do desembargador rebelde repercutiu diretamente no meu trabalho como jornalista. Eu era então editor de Política em O JORNAL. Era uma sexta-feira, se não me engano. No fim da tarde, o editor-chefe naquele período, o experiente Roberto Tavares, que havia deixado Recife para assumir o jornal alagoano, me chamou em sua sala. Era grave.

“Célio, dá uma olhada nisso aqui; acho que é uma bomba”, disse o chefe ao me entregar uma papelada que ele acabara de receber por fax. Era o discurso de Sapucaia, que estava tomando posse naquele momento no TJ. Assim que avancei na leitura, concordei empolgado: era uma bomba. Eu mesmo escrevi a matéria sobre a posse do cara mais invocado que o tribunal já teve de engolir.

O discurso é uma peça que alia denúncia, coragem, lucidez e ironia. Sapucaia chegou com o pé na porta, sem as mesuras e os salamaleques típicos dessas ocasiões. Conseguiu irritar todos os colegas ainda na posse, antes mesmo do primeiro voto nos julgamentos dos quais participaria no futuro. Mas, além do próprio TJ, o discurso também foi implacável com a OAB e o Ministério Público.

Para nossa satisfação adicional, lá em O JORNAL, no dia seguinte verificamos que a concorrência simplesmente silenciara acerca daquela bomba – o assunto sobre o qual produzi uma das reportagens que mais gostei de escrever até hoje. A cúpula da empresa recebeu reclamações da parte dos que se sentiram atingidos pelas palavras de Sapucaia. Fui chamado a dar explicações.

Ao conversar com o diretor-executivo, afirmei que não havia o que explicar. Era um fato grave e, além disso, apenas cumpri uma pauta da melhor maneira que sabia fazer. Os insatisfeitos alegavam que o tom da reportagem tinha sido “um pouco forte”. Respondi então que havia ressaltado os pontos mais relevantes do documento. Além da chateação, não houve represália. Não havia nada a fazer.

Para quem tiver curiosidade, o discurso de Antonio Sapucaia – que também atuou como jornalista por muitos anos – pode ser lido na internet. Um dos sites em que você encontra o documento é o Consultor Jurídico. A partir da leitura, passados 14 anos, vejam se o nosso Judiciário avançou muito. Além do mais, o autor mostra que tem estilo. É um texto vibrante, que merece a nossa reverência.

NOTA. Publiquei esse texto há dois anos, em outubro de 2017, aqui no blog. Sapucaia, que morreu nesta quinta-feira, deixa um legado que deve servir de norte para todos. Um legado de dignidade.

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