“Viralizou nas redes sociais”!

31/07/2019 03:59 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

O que é uma notícia, afinal? Ouvi essa pergunta algumas vezes ao longo de décadas, geralmente formulada por algum interlocutor curioso sobre as razões de minha escolha profissional. A resposta mais manjada tem uma dose de folclore, por assim dizer. É aquela explicação que, de cara, associa notícia a um fato inesperado, um tanto desconcertante, um negócio absurdo, enfim.

Essa resposta, “folclórica”, é formulada mais ou menos nos seguintes termos: se o cachorro morde a canela de um sujeito, isso não é pauta para o jornalismo. Agora, se os papéis se invertem, e o cara tasca os dentes na pata do animal, sim, temos uma notícia incontestável. Não sei quem inventou essa requintada teoria da comunicação, mas parece haver aí uma ideia pertinente.

Em tintas exageradas, tal ideia nos levará ao apelativo campo do grotesco. Por essa premissa, tudo o que é esquisitice terá prioridade como algo a ser noticiado. Nesse caso, chegamos a outra categoria de classificação das informações: é a hora do eterno sensacionalismo. A fábula do cachorro e do homem, no entanto, está longe de elucidar em definitivo o conceito de notícia.

É preciso lembrar que a “definição” esboçada acima tem mais a ver com a cabeça do jornalista. E para a maioria das pessoas, aquelas que tiveram a sorte de seguir por outras profissões? O que esperam receber como notícia? Em outras palavras, que tipo de assunto desperta o interesse do leitor, do espectador? A imprensa dá ao público um recorte, sempre arbitrário, dessa tal realidade.

Para chover no molhado, notícia e verdade não podem se dissociar. Se o repórter escreveu, e o editor publicou o acontecido, então aconteceu mesmo. Ocorre que, desde os primórdios da imprensa, a desconfiança esteve sempre ali, pairando sobre as melhores e piores redações. Aí entra mais uma variável em nossa equação sobre a alma do jornalismo: a credibilidade do veículo.

Corta para o cinema. Em 1987, o cartunista Henfil – que se meteu em todas as formas de criação – lançou o aloprado Tanga – Deu no New York Times? O filme, como o título sinaliza, faz comédia com tudo isso que estou tentando escrever neste texto. Henfil era encasquetado com a fama de infalível credibilidade do jornal americano. Se estava lá, naquelas páginas, era tudo verdade.

E por que todos acreditam cegamente, ou acreditavam, nos textos do NYT? Porque construiu a reputação de seriedade ao longo de sua história. Mesmo que os tempos sejam outros, é inegável que a aura de credibilidade ainda é seu maior patrimônio. Por isso, o ditador da ilha de Tanga, no filme de Henfil, tem no diário sua única e sagrada fonte de informação – essencial ao poder.

Mas eu falei da chegada dos novos tempos. Hoje em dia, expressões como velha imprensa e comunicação direta sem mediação entraram definitivamente na moda. É uma visão de mundo que veio para ficar, não resta dúvida. Sim, o fenômeno começou com a internet, mas a novidade revolucionária – que tudo mudou para sempre – se materializou com o triunfo das redes sociais.

A nova realidade abriu a maior crise no jornalismo profissional desde que o primeiro jornal circulou nesse mundo. Atordoados frente ao desconhecido, que rapidamente conquistou as mentes de um jeito arrasador, os tradicionais meios de comunicação quase enlouqueceram. E como se sabe, em horas enlouquecidas, o mais provável é a opção pelo vale-tudo. Hoje, a imprensa vai por aí.

Faça o teste e confira. Na TV, nos jornais, no rádio, na internet, proliferam as notícias que começam com a mesma sentença, escrita como um verdadeiro dogma: “Viralizou nas redes sociais”! Pronto. Ao anunciar a proliferação desse vírus onipresente, está justificada a decisão de transmitir todo e qualquer fato, por mais bizarro que seja. Se viralizou, claro que é do interesse público.

Só que não, diriam os jornalistas antenados também com a nova linguagem na ordem do dia. Quando até os gigantes da imprensa se curvam ao número de “likes”, fazendo desse fanatismo adolescente requisito obrigatório para tratar a tolice como notícia, danou-se. É por isso que, no topo dos sites, predomina a frivolidade tediosa das “celebridades” e dos “influenciadores”.

Saiu na Gazeta? É pro Fantástico? Deu no NYT? Não importa. O que o leitor quer saber é se a história está “bombando nas redes”. E a velha imprensa ainda não conseguiu reagir ao tsunami de outro modo que não seja aderir, bovinamente, à bagaceira. Por isso meu amigo Coelho surtou ao ler na Folha que o novo cabelo de Marina Ruy Barbosa viralizou – e “quebrou a internet”.

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