Deus não joga bola

11/06/2018 02:49 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Em primeiro lugar, toda honra e toda glória a Nosso Senhor Jesus Cristo. É assim, com esse palavreado entre a alienação, o messianismo e o oba-oba, que jogadores de futebol começam suas entrevistas logo após o jogo. Geralmente, a declaração precede as explicações sobre o êxito obtido no gramado. Se o cara ajudou na vitória com um gol, primeiro vem a saudação à força divina.

 

Essa religiosidade supostamente fervorosa é uma tradição na história do futebol brasileiro. Não sei quando começou, mas especulo que a origem seja por demais remota. Décadas atrás, artilheiros alagoanos deram pra repetir a seguinte explicação esotérica para o eventual sucesso numa partida: “Quem trabalha, Deus ajuda”. O sentido, mais sintético, é o mesmo das palavras de hoje.

 

Nos últimos tempos, as manifestações de fé se tornaram mais ostensivas no jogo – particularmente, claro, depois de um gol. Levantam-se as mãos para os céus, com o olhar fixo também para o alto e, fechando a encenação, trava-se um verdadeiro diálogo entre o goleador e a entidade sobrenatural. Daqui a pouco, os jogadores vão rezar o “Pai Nosso” para comemorar o golaço.

 

Disseminada nos clubes, a rezaria é marca registrada na seleção brasileira. Uma das imagens mais lembradas na trajetória de conquistas em Copas do Mundo é a comemoração de Jairzinho após seus gols nas partidas de 1970. O camisa 7 saía em disparada, já com as mãos para o alto e, na lateral do campo, de joelhos, fazia o sinal da cruz. Acho que é um precussor dos crentes atuais.

 

Em anos anteriores, na seleção, jogadores como Kaká e Lúcio passaram do ponto e tentaram transformar o local de concentração quase em templo religioso. Militantes evangélicos, pretendiam levar pastores para rituais coletivos. Hoje isso é oficialmente proibido pela CBF. O veto foi reafirmado agora mesmo na gestão do técnico Tite. Mas a decisão não diminui a suposta fé da turma.

 

Depois de marcar um dos gols na vitória sobre a Croácia, o coroinha Neymar postou agradecimento a Deus em suas redes sociais. É difícil acreditar que o mercenário deslumbrado pratique em sua rotina bilionária toda essa devoção ao Todo Poderoso. Não combina. É evidente que isso não passa de jogada de marketing. A religião do camisa 10 do Brasil está na igreja da fama e da ostentação.

 

Com o perdão da heresia, por que diabos esses sujeitos acreditam que o pai de Jesus olha, especificamente, para eles? E o adversário? Não merece a mesma atenção do Senhor? Não há nenhuma variável no mundo racional que sustente a crendice verde e amarela. A única explicação que encontro está, digamos assim, no princípio pós-teológico segundo o qual “Deus é Brasileiro”.

 

É por isso que a Bahia, laboratório maior do nosso colorido e carnavalesco sincretismo, legou ao mundo a equação definitiva: se macumba ganhasse jogo, o Campeonato Baiano terminava empatado. Há controvérsia sobre a autoria desse aforismo transcendental. Há quem atribua tamanha demonstração de sabedoria ao jornalista e técnico João Saldanha; outros dizem que seu autor é Neném Prancha, roupeiro e massagista do Botafogo. Seja quem for, é verdade incontestável.

 

Muita coisa nesse mundo não tem nenhuma explicação. Mas eu entendo: o autoengano alivia nossa brutal e escandalosa miséria. Acreditar em energias do além reconforta a existência atormentada e absurda. Nossos boleiros, sejam craques ou pernas de pau, nem desconfiam, mas é por isso que celebram o milagre de Deus, toda vez que a bola estufa as redes e a torcida vai ao delírio.

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