A voz do povo é de Deus ou do capeta?

22/04/2018 05:29 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Uma democracia sem povo, suponho que você concorda, democracia nunca será. É a participação popular, a opinião da maioria, que estabelece essa verdade universal. Mas, na prática, é evidente que a coisa não é tão simples assim. Penso nas incontáveis situações e nos intermináveis debates em que o dilema é exatamente como garantir a prevalência da vontade da maioria. É conflito.

 

Nos últimos anos, temos vários exemplos em que a questão foi levada ao centro da guerra política. Ainda com Dilma Rousseff no poder, sobretudo quando explodiram as manifestações de 2013, a ideia de convocação de uma nova Constituinte foi defendida por muita gente, tanto de dentro quanto de fora do governo. Seria o caminho para, segundo essa corrente, promover reformas profundas.

 

Na falta de uma Constituinte, uma alternativa seria então a convocação de um plebiscito para decidir sobre grandes temas, vitais e urgentes para a vida do brasileiro. O tempo passou e, cinco anos depois, não houve nem uma coisa nem outra. Para os defensores da consulta à população, decisões graves exigem o aval explícito dos cidadãos. Sem isso, não haveria legitimidade nas ações oficiais.

 

Também a partir de 2013, uma das modas que surgiram foi a seguinte formulação: nenhum partido representa mais os anseios da sociedade. O modismo se desdobrou e permanece. É a tal crise de representatividade. Sendo assim, é necessário recorrer a mecanismos que permitam um protagonismo real do eleitor, não apenas uma mera formalidade. E quais seriam esses mecanismos?

 

Ninguém sabe. Na falta de uma solução mágica, porque isso não existe, proliferam versões diferentes de uma mesma tese: tudo precisa passar, antes, pelo crivo de todos. Isso inclui, por exemplo, eleição direta para ministros do STF. De volta ao plebiscito, seria o caso de recorrer à consulta sobre reformas como a da Previdência. Há ainda o projeto de candidaturas avulsas, sem filiação partidária.

 

Nada disso, porém, parece provável até agora – e assim deve continuar. No meio de toda a propalada descrença na política tradicional, estamos a caminho das urnas, rigorosamente dentro dos critérios clássicos de escolha de nossos representantes no Legislativo e no Executivo. Ou seja, ainda que o diagnóstico decrete a falência do sistema político, as regras do jogo não caíram.

 

Nesse enredo que segue – difuso, errático e imprevisível –, o sujeito oculto é a voz do povo. Essa é a essência da democracia plena, beleza, mas a pergunta inconveniente é: o povo é sábio? Amenizando: o povo é sempre sábio? Para quem acredita que as redes sociais nasceram com a vida humana, sim. Com essa ligeira pegada sociológica, o oráculo se manifesta no alarido da internet.

 

Faz sentido. O tiroteio verbal das redes derruba estrelas da TV, força reviravoltas nas tramas noveleiras e obriga o cancelamento de eventos como palestras e exposições. Uma corrente de internautas barra a contratação de um astro do esporte, fulmina campanhas publicitárias de gigantes do mercado e leva um governo a revogar medidas apresentadas como incontornáveis.

 

Nem se fale de autoridades, de todas as esferas, a invocar o absoluto respeito ao sacrossanto clamor das ruas. Se a opinião pública diz que é assim, assado não pode ser. Chegamos à velha tese, milenar, segundo a qual a voz do povo é a voz de Deus. Além de pensamento essencialmente populista, e até demagógico, isso não parece fácil demais? Há lógica numa sentença tão simplória?

 

Não pode ser. A história das civilizações aponta para a conclusão oposta. E basta ficarmos nos exemplos clássicos do século 20, o período em que as maiores tiranias se ergueram com o aval enlouquecido da sabedoria das massas. Parece incontestável que nunca as ruas erraram tanto. 

 

Resumo esse conjunto de palpites: quanto a Deus, não sei; mas o capeta adora a voz do povo.

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