Conversando, a gente não se entende

14/04/2018 03:57 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

É claro que você também anda por aí reclamando da abominável onda de intolerância. Em suas manifestações pelas onipresentes redes sociais, deve estar mandado recados pacifistas para o mundo. Com a mesma ênfase, e na mesma frequência, você também aponta aqueles que, segundo seus respeitáveis princípios morais, são mentores de tanto ódio, por todos os lados.

 

Além de se declarar profundamente triste com os rumos da vida no país, você divide com amigos, colegas e admiradores ideias para a resistência. “Resistir”, aliás, está entre os verbos campeões de audiência na troca de informações, desabafos e convites à mobilização. É como se fosse o fim do mundo. E diante da gravidade desses dias, você não para de alertar sobre o avanço do fascismo.

 

Você faz o máximo. É inteligente, está por dentro de tudo, tem paciência e espírito democrático. Mas, claro, ninguém pode aguentar certas obscenidades praticadas por uma legião de dementes, desinformados e seguidores do mais deplorável autoritarismo. Chega uma hora em que, com esses canalhas, só mesmo na porrada. Você lamenta, porque definitivamente sua alma é delicada.

 

Você compartilha toda e qualquer hashtag (#) que exalte o diálogo, a solidariedade e o engajamento em nome de causas nobres – ou que represente combate a algum tipo de arbitrariedade. Você não perde a oportunidade de reproduzir aquele texto de um pensador exemplar (na sua opinião) no qual ele “disse tudo” o que a gente precisa ouvir. Ainda melhor se o autor for uma estrela intelectual.

 

Quase resignado frente à decadência irrefreável de nossos tempos, você se pergunta, e pergunta a seus amigos: onde isso tudo vai parar? E seus amigos respondem no mesmo tom, solidários e igualmente à beira da resignação. É, querido, nunca imaginamos que essas pessoas fossem capazes de atos tão violentos e opiniões tão hediondas. Quando foi que a humanidade se perdeu?

 

No meio do caos, você ainda encontra tempo para dar atenção às vitimas de Alepo e ao povo palestino. Sua formação humanista jamais estará indiferente ao neocolonialismo que os americanos espalham mundo afora. Com esse olhar globalizado, você repudia a onda de xenofobismo que toma conta da velha Europa. É preciso aceitar a diferença e conviver pacificamente com diferentes culturas.

 

Não foi sua culpa, naturalmente, mas você acabou sendo forçado a romper velhas amizades. Não dava mais para suportar idiotas que, um dia, tolamente, você achou que fossem dignos de sua convivência. Não dá para conversar com alguém tão incapaz de enxergar o óbvio, o lado certo – que é obviamente o lado que você escolheu. Melhor tomar cuidado com esses bonzinhos de fachada.

 

Por falar nisso, você também está atento a esses cretinos que se apresentam como independentes, ou que pregam a indiferença, vejam só, diante de uma verdadeira guerra! Não senhor, não me venha com essa de “isentão” – porque isso é pilantragem ou covardia, não tem escapatória. Você sabe que não tomar partido, de modo claro e visceral, é a mesma coisa que jogar no time do inimigo.

 

Como você tem repertório, divide com todos a memória de outras épocas em que viver era mais saudável. Lembra de uma fase em que a música, a poesia, o cinema, coisas assim, tinham a força de nos mobilizar. Hoje em dia, tudo descartável e fútil, perdemos a noção da verdadeira arte. Cercados pela ignorância dos outros, vemos triunfar a mediocridade que alimenta os ignorantes.

 

Você está cansado. Mas sabe que não perdeu o encanto pelas boas coisas da vida. Então compartilha uma paisagem de pôr do sol, com um verso, para lembrar que, corajosamente, resiste à barbárie. Os amigos, comovidos, se reconhecem na mensagem e inundam sua existência de likes e corações vermelhos. Aí vocês marcam um papo, regado a bom vinho, naquele bistrô ma-ra-vi-lho-so!

 

Eu sei: você faz a sua parte por um mundo melhor!

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