“A ousadia dos bandidos”

06/03/2018 04:10 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Uma igreja é alvo de ladrões durante a madrugada. Grupo de assaltantes ataca as vítimas no meio da tarde, em pleno centro da cidade. Agência bancária invadida por um bando fica a menos de cem metros de um quartel da Polícia Militar. Estudantes são assaltados dentro da sala de aula. Integrantes da quadrilha circulam livremente pelas ruas com armas pesadas, ameaçando moradores do lugar.

 

Todos os dias você lê ou escuta frases como essas que acabo de listar. Com alguma variação, o que vai no parágrafo acima são manchetes, títulos ou “chamadas” de reportagens que a imprensa publica com uma frequência infernal. Estamos no Brasil. E tão previsível quanto a recorrência do crime é a forma como o fato é divulgado pelos meios de comunicação. Parece até haver um manual.

 

A cada episódio de violência como esses, não há repórter ou editor que resista a um dos clichês mais repetidos na história da imprensa brasileira – e isso não é exagero. Refiro-me à sentença que diz assim: “A ousadia dos bandidos não tem limites”. Ou, numa versão ligeiramente modificada, diz o apresentador de TV e escreve o redator do jornal: “Bandidos estão cada vez mais ousados”.

 

Quando escrevemos, um dos problemas na rendição a fórmulas consagradas é a eliminação de parâmetros. Se o assalto a um templo religioso é uma ousadia do meliante, um roubo de cinco milhões de dólares – nas dependências de um aeroporto – seria o quê? Ousadia também? Sendo assim, os dois ataques se equivalem? Quais os critérios para classificação tão elástica?

 

A linguagem nos diferencia e nos define. Para cada situação, uma descrição específica, precisa e contextualizada. Um acontecimento não é igual a outro. Se embalamos tudo com a mesma ênfase desmedida, apagamos as particularidades de cada situação – e damos repercussão idêntica a realidades distintas. Embaralhando categorias e conceitos, confundimos o tudo com o nada.

 

Um dos desafios permanentes do jornalismo é vencer a tentação da facilidade. Aquela expressão chamativa, que parece se impor de maneira tão avassaladora sobre nosso pensamento, é a velha e diabólica armadilha do lugar-comum. Capturada pelo demônio do atalho facilitador, a reportagem estará inapelavelmente contaminada por esse mal de origem – e tanto faz como tanto fez.

 

Em níveis estratosféricos, é assim que se comporta a imprensa diante de qualquer assunto que, por alguma razão, vira notícia. Pode ser por preguiça ou por deficiência na formação. Pode ser a pressa para sair na frente ou a aversão à leitura. As causas da tragédia são diversas, mas certamente as que acabo de citar estão entre as mais comuns. E não se vê sinal de mudança no panorama.

 

Já escrevi aqui sobre esse gosto depravado pelo chavão que domina o texto da imprensa. Volto ao tema porque é algo a ser combatido diariamente. E também porque essa encrenca é uma obsessão antiga do blogueiro. Se a ousadia da bandidagem “é cada vez maior”, suspeito que nós, jornalistas, somos qualquer coisa, menos ousados. E olhe que nem falei do bandido “fortemente armado”.

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