Direita e esquerda endoidecidas

03/02/2018 03:37 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Numa das bandas do que vou chamar de esquerda, a palavra de ordem é: os fascistas tomaram conta de tudo. Estamos cercados por uma ameaça que, mais cedo do que logo, vai nos arrastar para o fim do mundo. Para essa turma, termos como liberalismo, mercado, família e valores conservadores escondem intenções reacionárias e até mesmo malignas. E não adianta argumentar.

 

Numa das bandas do que vou chamar de direita, a palavra de ordem é: os comunistas dominaram a universidade, a pré-escola, as igrejas, a imprensa, o mundo da arte e da cultura. Prova disso, para essa turma, é o absurdo da exaltação gay e a glorificação de artistas adeptos até de pedofilia. A meta do discurso progressista e revolucionário é nada menos que nossa extinção. E não tente argumentar.

 

A era da conexão total e globalizante alterou para sempre a forma pela qual essas duas bandas agitam suas bandeiras. Ironicamente, na linguagem beligerante e irracional, as turmas reproduzem a mesma postura alarmista, sectária e falaciosa. Os dois lados se acusam pelo mesmo comportamento paranoico, que trata o outro como um inseto repugnante, um inimigo a ser abatido.

  

Esta é uma guerra tão espalhada no país, um circo de tanta histeria, que nem dá para eleger o que é mais representativo, por assim dizer, nas manifestações das patrulhas em conflito. Agora mesmo, enquanto escrevo no meio da madrugada, certamente surgem novos vídeos e “textões” na internet, assinados por incontáveis gurus que alimentam a voracidade ideológica de todos.

 

No campo da criação estética e da produção de conhecimento, temos uma arena à parte. De Chico Buarque a Pablo Vittar, da valsa ao funk, da tradição à vanguarda, nada escapa à sanha condenatória de ativistas donos da verdade absoluta. E é claro que eles estão igualmente nos dois extremos, prontos a sacar teóricos e teorias que repetem precisamente a música que cada um quer ouvir.

 

Por falar em ideias e pensadores, as bandas de esquerda e de direita patrocinam uma banalização geral de autores que nada têm a ver com a truculência verborrágica de ativistas em geral. Na verdade, há uma bizarra distorção de tudo, até de textos fundamentais ao longo da história. De Marx a Olavo de Carvalho, de Platão a Gilberto Freyre, ninguém escapa às milícias endoidecidas.

 

Dispostos a enfrentar o inimigo, militantes das duas tribos atacam numa frente que também é uma novidade nos dias atuais: são os encontros regionais dos grupos organizados para defender o Brasil do tenebroso avanço da influência comunista – ou do tenebroso avanço do neoliberalismo fascistoide. É o paraíso: plateias amestradas, sedentas pela mensagem que afaga suas convicções.

 

O perigo nos dois extremos é que o pessoal se leva bem a sério. Mais que isso, nossos militantes estão certos de que têm um papel a cumprir na grande missão de transformar o Brasil e o mundo. É o lado cômico dos fatos. Como nenhum tipo de messianismo até hoje conseguiu me comover, não tenho nenhuma paciência para coletivos, manifestos e mobilizações.

 

Direita. Esquerda. Política. Ideologia. Partidos. Guerra cultural. Engajamento. Causas sociais. Estado. Religião. Não contem comigo para surfar em nenhum esoterismo como estes que acabo de listar. Não se pode perder tempo com irrelevâncias na vida que é tão breve. Como dizem os versos do grande Paulo Leminski: eu quero viver de verdade/ eu fico com o cinema americano.

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