A maldição da política em sua vida

31/10/2017 03:45 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Ideologia – quem precisa de uma para viver? Trinta anos depois de Cazuza cantar as ilusões perdidas e os sonhos vendidos, parece que todo mundo finalmente encontrou uma causa para defender. E a julgar pela zoada ensurdecedora, o engajamento atual em nome do que se acredita é capaz de tudo – até de enterrar amizades que pareciam eternas. Para quem está do outro lado, tolerância zero.

 

Nos tempos da canção de Cazuza, a reta final da década de 80, o país caminhava sem rumo sob o governo Sarney desmoralizado. Nenhum projeto despertava confiança. Nada mobilizava ninguém. Não havia alternativas capazes de transformação para superar a tragédia social que definia a realidade dos brasileiros. Os versos do poeta do rock, quase simplórios, resumem o abismo.  

 

Era a ressaca da pós-ditadura militar. Nos vinte anos anteriores, a falta de liberdade e a perseguição política alimentaram a resistência e turbinaram, nos ambientes intelectuais e da arte, o saudosismo pela velha ideia – tão cara – de uma utopia. Tudo isso havia acabado. Era mais ou menos o que registrava o desencantado roqueiro, numa espécie de engajamento pelo avesso, quase niilista.

 

Hoje, as palavras de ordem retornaram. A convocação à luta contra o fascismo é um imperativo existencial. Na sala de aula ou na balada, ninguém deseja um bom dia sem antes cobrar nossa assinatura em alguma petição de protesto. Há sempre um famigerado reacionário prestes a mais uma barbaridade – e você não pode ficar aí parado, na sua omissão horripilante.

 

É impossível encontrar um espaço de convivência livre dos debates acirrados sobre todas as coisas que existem no mundo. E isso inclui um atirador numa escola, Nicolás Maduro, a Síria, cultura do estupro e a próstata de Michel Temer. E inclui também todos os temas que você conseguir lembrar. Lamentar esses tempos sombrios virou uma senha de acesso a uma nova dimensão.

 

Não é necessário esperar pela ocasião mais adequada para expor ideias e protestar. Nas universidades, nos coletivos de cinema, nas redações ou nos salões da moda para barbudos, aderir ao discurso militante – à esquerda, à direita ou de cabeça pra baixo – é tão comum quanto fazer uma tatuagem. Aliás, em muitos casos, suspeito que as duas atitudes até se equivalem.

 

Não tente pular fora da raia com essa conversinha de isenção. Ninguém é apolítico. Existe até uma ofensa já consagrada, em tom de piada, para esses casos repulsivos de dissimulação: quem posa de equilibrado são os “isentões”, elementos que na verdade estão escondendo as piores preferências no meio da guerra. Essa postura pode ser mais grave do que cometer um crime na vida real.

 

Tal como se dá entre nós hoje em dia, a fixação na política envenena a cabeça e a alma. É um erro fatal. Nem todas as causas são ideológicas. Aliás, a essência da vida passa longe dessa maldição – uma maldição, sim, que, sendo onipresente, parece a única paisagem diante de nossos olhos. Mas é um delírio. E seja qual for sua ideologia delirante, acredite: os inimigos sempre estarão no poder.

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