Subindo no telhado pra tocar guitarra

22/10/2017 17:38 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Tudo começou no dia 30 de janeiro de 1969, num endereço de Londres. Quatro elementos tiveram a ideia de tocar umas musiquinhas num lugar inusitado. Para arranhar suas guitarras, escolheram o terraço de um prédio – um feito jamais visto até ali na trajetória do rock. Eram os Beatles em fim de carreira. Aquela performance seria a última vez que o grupo se apresentaria ao vivo.   

 

Não houve aviso prévio da apresentação. Moradores e transeuntes perceberam, aos poucos, a cena inesperada. A plateia ia se formando entre um acorde desafinado e outro. Por trás da ideia aparentemente despretensiosa estava a gravação de um documentário que imortalizaria o evento. O show inesperado durou 42 minutos e acabou com a chegada da polícia.

 

Como toda iniciativa original, aquela também daria frutos estranhos ao longo do tempo. Por isso, nas últimas quase cinco décadas, toda semana uma bandinha qualquer, em qualquer parte do mundo, macaqueia o gesto do quarteto de Liverpool. Os mais exagerados garantem que, naquele dia frio para os londrinos, os Beatles inauguraram um gênero pop: música no terraço.

  

Não há escapatória. A exaustiva repetição de qualquer coisa – uma frase, um verso, uma música – fulmina o que antes havia de criatividade no ato inaugural. A diluição é o destino incontornável daquilo que veio primeiro. É assim na história das ideias e da arte. Após o impacto de algo radicalmente novo, seu autor tem um encontro marcado com a legião de imitadores.

 

Volto aos roqueiros. Sob a rentável inspiração dos Beatles, a banda irlandesa U2 também subiu no telhado para tocar. E o grupo não se satisfez com uma única experiência. A primeira vez foi no fim da década de 80, em Los Angeles, quase vinte anos após o quarteto de franjas. Em 2007, os liderados de Bono Vox voltaram a escalar um edifício, agora na mesma Londres.

 

Os irlandeses provam que música no terraço virou mesmo um gênero. É assim ao menos para a indústria do entretenimento, sempre ligadíssima em novas fontes de lucro – em sociedade com os artistas, é claro. O cenário no alto de um prédio, que um dia foi surpreendente, banalizou-se, virou item obrigatório em clips de medalhões do pop e de aspirantes ao estrelato.

 

De tão melancolicamente imitado, resta evidente que realizar um show no alto de um prédio deveria ser proibido por lei. Como prevê o Código Penal, trata-se de um crime continuado. Mas nada disso interessa à feitiçaria do marketing para turbinar as vendas do produto em questão. É por isso que neste domingo, aqui no Brasil, podemos ver uma banda no telhado. De novo, é o U2.

 

Para confirmar sua veia eternamente rebelde, o rock da banda irlandesa toca nos telhados da Rede Globo. Mais que isso, o show é exclusivo para o Fantástico. Como se vê, já perto de 50 anos, aquela invenção dos Beatles continua rendendo a única coisa que poderia render nos dias de hoje: uma sinfonia de oportunismo, cretinice e mediocridade. Pode cortar o som, que a arte está morta.

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