O jornalismo e o Dia do Sorvete

07/10/2017 16:25 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Chego à redação para mais um dia de trabalho. Minutos depois, começa a imprevisível reunião de pauta, o momento em que nós jornalistas vamos praticar o delirante exercício de hierarquizar o mundo ao nosso seu redor, ou seja, pretendemos nessa hora – vejam bem – definir o que é e o que não é notícia. No apressado desfile de ideias, que vai da excitação ao absurdo, e vice-versa, a ameaça do fracasso nos assombra.

 

Nas incontáveis reuniões de pauta que coordenei ao longo da vida profissional, nenhum veredito era mais recorrente do que o anúncio de um terrível dilema entre meus colegas: o dia está fraco, sem assunto digno de virar uma reportagem. E agora? Confrontado com esse desconcertante diagnóstico sobre o panorama da vida, um velho espanto me tranquilizava: falta de assunto é ficção científica.

 

Como costuma ocorrer com frequência, em vários momentos de nosso dia a dia, seja qual for sua atividade, lamentar a suposta inexistência de algo que vale nossas melhores apostas é dobrar-se à sedução de um falso dilema. No caso do jornalismo, conformar-se à equivocada convicção de que não está acontecendo nada é abrir as portas para as piores pautas do mundo. Um perigo mortal.

 

Falando assim, pode parecer fácil desmontar o erro de avaliação, mas acredite: agora mesmo, no laboratório de redações, dos jornais à TV, do rádio à internet, a angústia de procurar em vão por um tema arrasa o espírito do jornalista e o arremessa ao mais profundo desalento. De novo, o aparente vazio de matéria-prima com potencial de virar notícia fertiliza o solo para o florescimento de insanidades.

 

Pressionados pelos prazos que avançam implacavelmente, e pelos espaços a preencher com novas histórias, nossa irritação envenena o ambiente – e o clima de desespero anuncia que chegou a hora de apelar a qualquer resquício de salvação. Começam as sugestões que variam entre a repetição de assuntos enfadonhos e as bizarrices do tipo que tal uma reportagem sobre o dia do sorvete?

 

Chegamos à melancolia. O grande público, que nada contribuiu para essa aterrorizante crise de talento e de criatividade, será alvejado pela irrelevância mais tacanha. Reportagem para celebrar o Dia do Sorvete, um marco no calendário do país que eu ignorava até hoje, apareceu recentemente na TV alagoana. É só um exemplo num oceano de atrocidades veiculadas cotidianamente como se fossem o exercício do mais puro e legítimo jornalismo.

 

Mas é o oposto. É a tradução de miséria intelectual, critérios obtusos de escolha, preguiça profissional e nenhum compromisso com a realidade. Entre várias explicações para esse estado de indigência mental, chamo atenção para uma muito peculiar, e que é marca registrada numa imprensa resumida ao diversionismo mais despudorado. Refiro-me ao medo geral de mexer em pautas belicosas.

 

Lançar mão de temas imprestáveis, sem constrangimento pelo ridículo, é confortável para jornalistas que evitam o conflito e se amarram numa conciliação ampla com setores poderosos e influentes, de qualquer segmento da vida pública. É melhor fugir da denúncia, da investigação e do confronto, seja lá com que for. Do futebol à política, tudo é superficial, festivo e bajulatório. Tudo em harmonia, todo mundo sai ganhando. 

 

Então é o seguinte: ao contrário do que se ouve nas reuniões de pauta, tudo pode acabar nessa vida, é verdade, mas assunto para uma reportagem, isso nunca. Mais ou menos como escreveu um poeta certa vez, mal acordamos, os acontecimentos e perplexidades saltam sobre nós – com uma frequência alucinante e enigmas desafiadores.

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