Um jogo de futebol e algumas ideias

28/09/2017 03:45 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Suspeito que nem todo mundo sabe, mas houve um tempo em que o centroavante de pouca habilidade era chamado de trombador. Sem aviso nem explicações, como tudo na vida, ou quase tudo, isso mudou para sempre. Hoje em dia, misteriosamente, o mesmo tipo de jogador é elogiado por uma de suas “principais qualidades”: o cara é um especialista em fazer a parede.  

 

Alguns trombadores me ocorrem agora. Dadá Maravilha, Beijoca, Serginho Chulapa, Viola, Joãozinho Paulista e Dentinho foram modelares. Com alguma licença poética, muitos poderiam citar Nunes e Roberto Dinamite, mas eu discordo. Um legítimo trombador distribui a esmo caneladas e pontapés, corre olhando para baixo, chuta pra todos os lados e reza por um cruzamento pelo alto.  

 

Mas não vou aqui cometer uma resenha, ainda que precise explicar melhor o espanto diante do fenômeno que chamarei de um deslocamento de princípios no futebol. O que temos, com a nova nomenclatura, é mais um caso em que as palavras parecem nos revelar – sem que os cronistas se deem conta – uma reelaboração de conceitos, valores e paradigmas. Renomear o trombador para pivô muda o jogo que se joga fora de campo.

 

No cenário brasileiro atual, os dois pivôs mais elogiados por comentaristas de todas as tendências são Jô (Corinthians) e Guerrero (Flamengo). Além de fazer a parede, de costas para os zagueiros adversários, dominam como ninguém a arte de flutuar na entrada da área. Quando vemos a dupla em ação, cada um por seu time e com suas particularidades, os velhos e autênticos trombadores nos dizem algo inquietante, algo que se foi e que retorna.

 

Se você não gosta de futebol, ou é indiferente a esse esporte, talvez não entenda tamanha atenção a um irrelevante jogo de bola. Naturalmente, meu assunto aqui não é a disputa de uma partida ou a rivalidade entre dois times. Também não cuido de idolatria por sujeitos afamados como craques. E, principalmente, não estou interessado se um time perde ou vence de goleada.

 

Berrar, brigar ou chorar, na vitória ou na derrota, são apenas manifestações banais e tediosas, diante de um teatro único e imprevisível. Gostar de futebol e torcer por um time são coisas diferentes. Desconheço o que chamam por aí de time do coração. Livre do fanatismo, que nunca experimentei, o jogo se expande sem parar, em significados e perplexidades.

 

Talvez por isso, e não por torcer por um clube – o que não faço –, tenha assistido, nas últimas horas, a duas partidas de futebol. Em cada lance, da mais extrema inventividade ou da mais inacreditável presepada, é o pensamento que está em jogo. Sempre. O torcedor apaixonado e o centroavante discordam, mas o gol é só um detalhe. O drama é outro, mais amplo e muito mais profundo. 

 

Mas se você considera todo esse amontado de palavras uma bola fora, está tudo certo. Pode me chamar de perna de pau.

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