Vida e morte em nossas palavras

27/09/2017 02:17 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Tudo está à beira do lugar-comum. Tudo mesmo, inclusive a frase que acabo de escrever na abertura do texto que você está lendo agora. E por que isso tem alguma importância em nossas vidas? Porque tudo em volta se articula, antes e inapelavelmente, na forma de discurso. E o instrumento inescapável na construção de um discurso – para a defesa de uma ideia – será, sempre, cedo ou tarde, um conjunto de lugares-comuns.

 

Sustentar um ponto de vista, com alguma originalidade e consistência, é o que poderíamos chamar de tarefa infernal. Para qualquer paisagem que se olhe, somos arrastados pelo turbilhão de frases feitas, como se aquelas frases nos dessem as soluções incontestáveis aos dramas e mistérios da vida – por mais terríveis e insondáveis que sejam aquilo que é dramático e aquilo que é misterioso.

 

Cedo ou tarde, no primeiro parágrafo, e tarefa infernal, no segundo, são os dois lugares-comuns mais visíveis que usei até aqui. Você pode identificar outros, ou nenhum, a depender de seu repertório, da sua visão de mundo e da sua paciência. É automático. É compulsivo. O que antes tantas vezes já foi dito reaparece a cada ímpeto por alguma explicação, e o velho se impõe como novo. Uma armadilha para o espírito a cada esquina, a cada opinião.

 

Destrinchar a fala recorrente que atravessa os tempos está fora do alcance de qualquer um. Da Bíblia ao manifesto das vanguardas, a redundância assombra a linguagem. Do primeiro filósofo ao homem anônimo do agora e do futuro, a solução verbal que um dia arejou a realidade estará, ao fim e ao cabo, no catálogo infinito das repetições. O índice de uso e reuso será a única diferença. No grau máximo da perversão repetitiva, significado nenhum sobrevive à morte da palavra.

  

Agora mesmo – para não ficarmos na pura divagação, longe da vida real – uma artilharia de lugares-comuns aponta para nós. O Rio de Janeiro vive uma escalada da violência; os editoriais na imprensa, claro, exigem: Basta!. A crise generalizada levou o país a um aparente beco sem saída. Vivemos um problema tão desesperador, e inédito, que não resta dúvida quanto ao diagnóstico teatral: é caso de vida ou morte.

 

Numa espiral interminável e fatalista, o pensamento modela nosso texto e nossa fala – e o que escrevemos modela o que pensamos. Quando os termos desse movimento cobrem todas as situações, leves ou pesadas, perigosas ou inofensivas, íntimas ou universais, então aqueles termos nada mais têm a nos dizer sobre a leveza e o fardo, o perigo e o destemor, a intimidade e o infinito das coisas e dos sentimentos.

 

Na vida pública, especialmente na política, está o mais deletério e degradado laboratório de lugares-comuns. Faz sentido. Para conquistar a adesão da maioria, a retórica da autoridade e da ordem se estrutura essencialmente na repetição de clichês e no apelo das frases de efeito. O resultado previsível é a consagração do consenso rasteiro e a eliminação de qualquer divergência. Temos aqui uma das regras absolutas do poder.

 

A literatura, ainda que tantas vezes contaminada por abusos e vícios da palavra, é nossa barricada para resistência ao colapso definitivo. Só não digo que cada um deve fazer a sua parte porque isso não quer dizer absolutamente nada – nem ontem, nem nunca. Nossa sobrevivência depende de algo mais radical, que pode até parecer um delírio, mas, acredite: precisamos defender a linguagem.

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