A gritaria sobre uma exposição e o eterno mistério da arte

24/09/2017 04:15 - Blog do Celio Gomes
Por Redação

Aquela exposição proibida em Porto Alegre ainda é notícia – e até fora do Brasil. Uma abordagem comum na cobertura da imprensa sustenta que uma “onda conservadora” forçou o banco Santander a desistir do evento, depois que o Movimento Brasil Livre, o MBL, denunciou que algumas obras eram ofensivas a valores cristãos e exaltavam a pedofilia e a zoofilia.

 

O caso, do qual já tratei aqui, mistura um bocado de temas: política, liberdade, uso da censura, direitos individuais, religião, ideologias, vozes da direita e da esquerda. Católicos e cristãos em geral se sentiram particularmente atingidos pela suposta agressão a símbolos de fé, considerados sagrados. Para esses, qualquer argumento em defesa da exposição será inútil. Dogmas descartam o diálogo.

 

Mas o ponto que me interessa agora é outro. O bombardeio de opiniões e impropérios ressuscitou um velho debate e recolocou na praça o dilema igualmente antigo, no qual já se entranharam pensadores de todas as correntes, em todas as épocas: o que é a arte, afinal? A pergunta é praticamente um fantasma que se recusa a dormir no além e retorna quando menos esperamos.

 

Sim, porque um dos ataques mais comuns às obras expostas pelo banco garante que imagens escatológicas representam tudo, menos uma expressão artística. Não faltaram aqueles que decretaram que arte é a expressão da beleza e do sublime, algo construído com a nobre finalidade de nos dar prazer e até doses de felicidade. A tese é uma inocente e equivocada viagem no tempo.

 

É um tanto desconcertante – mas não surpreendente – que o conceito do belo ainda seja, para tantos, critério definidor na criação do artista. É uma regressão de séculos. Estivéssemos ainda sob tal paradigma, o mundo jamais teria conhecido a era da modernidade e todas as vanguardas que demoliram fronteiras, ampliaram modos de linguagem e libertaram nosso olhar para ver o infinito. Falo o óbvio, eu sei.

 

Nossa resistência à estranheza parece nascer com o DNA. Pular fora do convencional será quase uma traição, ou um pecado mortal, a convicções forjadas na matéria do idealismo. Quando essa rendição ao simplório se une a tabus e crenças religiosas, o ciclo se fecha em níveis irrecuperáveis. É o triunfo do fanatismo. Ou algo por aí. Guiados por tais valores, ainda que seja pura arte, só veremos danação.

 

De tão sedutores, o erro e a tolice dominam até aqueles que detêm instrumentos valiosos de análise. Penso na literatura e no grande poeta Ferreira Gullar. Em mais de uma entrevista, em seus últimos anos de vida, declarou que considerava um escritor como Samuel Beckett “um grande chato”. E explicava que, para ele, o irlandês produziu uma obra que deixa o leitor em depressão.

 

É uma avaliação primária, um erro indefensável, ainda que se trate de Ferreira Gullar. Procurar boniteza e conforto na música, na pintura, na instalação ou nas páginas de um romance não faz nenhum sentido. Como disse, seria andar para o passado, para bem antes de tempos medievais.

 

Mas, diante do debate sanguinolento que se espalhou, suspeito que seja uma guerra perdida. De todo modo, se no terceiro milênio ainda nos perguntamos o que é a arte, e qual a sua função em nossas vidas, não serei eu, tão perdido nesse mundo quanto você, a desvendar tamanho mistério.

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