Quem escreve a primorosa crônica abaixo é do advogado Vanderlei Lourenço, coordenador-geral, do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra, da Fundação Cultural Palmares, em Brasília.


Eu tinha dez anos quando me mudei para Alvinópolis, Minas Gerais para continuar os Estudos. Fui morar com meus avós. Ficava de segunda a sexta. Final de semana era sagrado voltar pra casa. Havia um combinado de pai com Jésus ou Zé de João, que transportavam leite para a cooperativa da cidade. Bastava estar no ponto na hora em que eles saiam. Descia e avisava que pai "pagava depois".

No bairro de minha avó sempre passavam uns carros anunciando todo tipo de coisa para vender. Foi numa dessas que me encantei por um pato de porcelana e imaginei que mãe ficaria contente em tê-lo na sala de nossa casa.
Comprei fiado para pagar na semana seguinte, sob a observação de que não se aceitava devolução.

Fim de semana. Cheguei feliz em casa, carregando o pato. "Gostou, pai?" "Bonito", ele disse. "Comprou com que dinheiro?" Falei que era barato e que ele me daria o dinheiro. Daí, ele me respondeu: "Segunda-feira você leva esse pato e devolve. Você tá na casa de sua avó para estudar, não para ficar comprando coisa supérflua." Gelei. Não podia devolver o pato. Onde eu ia arrumar dinheiro? Meus olhos buscaram mãe e ela: "seu pai já falou..."

Tive uma idéia. Em nosso povoado do Toledo devia ter alguém que quisesse um pato bonito daqueles. Aumentei o preço é saí oferecendo. Casa em casa. O bicho pesando e ninguém queria... Passei pela casa de Zé Cansim e não parei. Estava desanimado: "ele também não vai comprar..." 

Fui à última casa. Donana, minha primeira professora. Achava que ia se interessar. "Bonito", ela disse. Mas, não comprou.

Voltei desolado. O choro entalado na garganta. Passei em frente ao quintal de Zé Cansim. Resolvi parar. Já não tinha nada a perder. Ele pegou o pato, virou de um lado, do outro... "Eu compro." Meu coração pulou! Ele avaliou. Não valia o que eu pedia. Mas, ofereceu, exatamente, o que havia custado. Voltei feliz e agradecido a Zé Cansim pelo resto da vida. Falei com pai sobre a venda. Ele não esboçou reação. Colocou a mão no meu ombro e falou: "Aprende uma coisa, meu filho: a gente não compra as coisas com o dinheiro dos outros."

Aprendi.