Getúlio Vargas e o segundo suicídio

24/02/2015 07:09 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
Image

Durante três meses, desde final de novembro do ano passado até início de fevereiro, ocupei-me da leitura, atenta, da biografia de um dos personagens mais emblemáticos e controversos da história recente do Brasil. Em três volumes, com 1700 páginas, o jornalista Lira Neto percorre três fases da vida e carreira política de Getúlio Vargas: sua formação política e ascensão regional; o golpe militar em 1930, sua chegada à presidência e o Estado Novo; a destituição em 1945, a vitória eleitoral, em 1950, e o suicídio, em 1954.

Muitos aspectos chamam atenção desse esplêndido material, além da vasta documentação, informações e bibliografias usadas pelo autor para descrever e narrar a história daquele enigmático homem público.

Primeiramente, gostaria de destacar a sólida formação intelectual e histórica de Vargas. Apesar de sua formação jurídica positivista, ele foi não somente capaz de destrinchar leituras de alguns clássicos da filosofia e ciência política, mas acompanhar também a produção na fronteira do conhecimento da época. Um leitor voraz, uma mente privilegiada que quase sempre, em momentos importantes de sua trajetória inicial, era acionada para mencionar autores ou trechos e parágrafos de livros que substanciassem seus discursos e decisões estratégicas.

Outro elemento característico de sua personalidade e atuação política era o exercício da paciência. Como poucos em sua época, soube esperar, ouvir e tomar as decisões em seu tempo mais adequado. Ficar atento as muitas opiniões parecia ser um processo comum de depuração, antes de tomar qualquer decisão de maior envergadura. Para tanto, teve que exercitar outra de suas fortes habilidades: a articulação e costuras políticas. Nesse ponto era um mestre. Se atualmente a sociedade critica o pragmatismo da classe política, em sua maioria, Vargas já exercia esse comportamento em larga escala.

Não tenho elementos para julgar se ele descumpria qualquer código de ética ou valores para sua época, reportando-se ao dito popular que diz “os fins justificam os meios”. Mas uma questão era muito clara: os interesses do Brasil, a construção de uma nação menos dependente economicamente e mais diversificada produtivamente, eram cláusulas “pétreas” em sua filosofia política.

Em toda a narrativa de Lira Neto não aparece um Getúlio Vargas que compartilhasse ou concordasse com comportamentos corruptos. O contrário parece indicar uma postura essencialmente ética e voltada para a responsabilidade pública, mesmo no exercício político ditatorial na primeira fase de sua carreira nacional.

Em várias de suas opiniões públicas e em suas conversas consigo mesmo, relatadas em seus diários (aliás, um riquíssimo acervo de reflexões, declarações e diálogos, como se estivesse sentado em um divã), Vargas condenava as nações ditas liberais-democráticas, pois via nelas a falta de controles suficientes e instituições verdadeiramente republicanas que limitassem os excessos das próprias elites que depredavam, dilapidavam e capturavam a ordem e os recursos públicos. Nesse ponto lembro-me muito da linha de raciocínio de Thorstein Veblen, um economista institucionalista norte-americano, que no início do século XX criticava fortemente a economia capitalista moderna e suas elites, no caso seu país de origem, que deixara para atrás o “espírito animal” e passara a viver mais da ostentação e às custas do Estado [1].

Por exemplo, para Oliveira Vianna, um dos intelectuais com certa influência sobre Getúlio Vargas, consultor jurídico do Ministério do Trabalho criado no seu primeiro mandato, a sociedade brasileira era incompatível com o liberalismo de origem ocidental, porque não éramos afeitos à solidariedade social e ao exercício da cidadania. Por essa razão, e não acreditando nas utopias do liberalismo franco-anglo-saxônico em nossas terras, Oliveira Vianna defendia que o Estado fosse moderno e centralizador, com a missão de induzir as diversas categorias sociais se organizarem, objetivando uma sociedade mais solidária, harmônica e cooperativa.

Para o próprio Getúlio Vargas, o regime democrático e suas necessárias articulações e acomodações políticas, era um estorvo. Sua preocupação com a administração política do país se colocava acima dos interesses particulares, das classes políticas que somente buscavam o poder para alimentar seus próprios benefícios, em detrimento do restante da nação. Em uma de suas frases deixada nos famosos diários ele expressa esse sentimento ao criticar o movimento liberal em torno da Assembleia Constituinte, que iria aprovar a Carta Magna do país em 1934: “As eleições fazem com que as conveniências políticas se vão sobrepondo aos interesses da administração. É o mal que volta” [2]. Alguma semelhança com nossa realidade de então?

Mesmo assim, o corporativismo classista fomentado pelo próprio Vargas esteve muito presente na Assembleia durante o período 1930-1945. Tornou-se um dos principais pilares de nosso processo de modernização, impulsionando o desenvolvimento econômico, agora sob responsabilidade do novo centro dinâmico: o mercado interno dinamizado pelas forças econômicas do núcleo urbano-industrial.

Preocupado com as funções do Estado e a providência em não repetir os erros das chamadas “presidências” regionais, Getúlio Vargas providenciará as bases de uma administração pública, pautada na burocracia como estratégia de valorização da meritocracia e combate as influências e capturas das instâncias governamentais, principalmente por parte dos interesses politiqueiros e particulares.

Por essa razão, em 1938, ele criou o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) para auxiliar a gestão pública federal e formar quadros para administração pública. Mas, antes disso, entre 1930 e 1931, o Governo Provisório já contava com a Comissão Permanente de Padronização, responsável pelo estabelecimento de regras e métodos de administração, e a Comissão Central de Compras, incumbida de tornar mais eficiente o processo de aquisição de materiais, indispensáveis ao funcionamento governamental.

O restante da história já é bastante conhecida. Principalmente a partir de 1945 o país dará um salto industrial relevante, com as técnicas de planejamento sendo usadas plenamente e auxiliando a construção de um moderno parque produtivo.

Sessenta anos após sua morte, podemos dizer que as principais instituições e empresas públicas que ainda figuram como importantes para nossa estrutura republicana e econômica, foram criadas durante o período que Vargas esteve à frente dos destinos do país. Mesmo assim, ele não escapou de um processo natural de saturação e desgaste político. Geralmente, durante esses momentos, as forças do atraso e mais reacionárias se aproveitam das fragilidades institucionais e vulnerabilidade da capacidade de articulação das forças populares. Além do mais, usam táticas e estratégicas para confundir a opinião em geral, lançando mão de todos os instrumentos ao seu alcance, desde os meios de comunicação sob sua propriedade, aos boicotes produtivos nos ramos econômicos que lideram. Esse tipo de movimento é bem conhecido na América Latina e desembocou em várias ditaduras civis-militares.

Se não fosse o suicídio de Vargas, em 1954, teríamos conhecido esse regime bem mais cedo. Entretanto, sua morte só foi suficiente para retardá-lo por dez anos apenas, pois em 1964 o golpe civil-militar interrompeu a construção de uma nação mais democrática e menos desigual que hoje aparenta ser. A ameaça comunista à época não passava de uma sombra à luz do aquecimento do termômetro da Guerra Fria travada pelos EUA e URSS.

Na ausência de uma sombra como aquela e com as forças armadas excluída do jogo de poder (pelo menos no momento), busca-se hoje todo tipo de razão para a reação conservadora e elitista no Brasil, desde a condenação dos governos populares na América do Sul, passando pela corrupção que assola o país e não esconde seu caráter pluripartidário e enraizamento em todas as classes sociais.

Talvez se Getúlio pudesse assistir tudo isso atualmente teria se suicidado pela segunda vez...

 

 

[1] Conferir VEBLEN, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Atica, 1974. (Os pensadores).

[2] NETO, Lira. Getúlio: Do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, págs. 142-144. Mais à frente Vargas demonstra toda sua preocupação com os esboços da nova Constituição: “Fui ler projeto, do qual não tive boa impressão. Achei-o muito inclinado ao parlamentarismo, reduzindo muito o poder do executivo”. Em outro trecho confessa: “Como aceitar o mandato de uma Assembleia, tendo eu ideias diversas dessa mesma Assembleia [...] Com a Constituição que está para ser votada, talvez seja preferível que outro governe. Não tenho dúvidas sobre as dificuldades que vou enfrentar” (NETO, págs. 179 e 188). 

Comentários

Os comentários são de inteira responsabilidade dos autores, não representando em qualquer instância a opinião do Cada Minuto ou de seus colaboradores. Para maiores informações, leia nossa política de privacidade.

Carregando..