Dona Marina é avó de Natanael. Natanael tinha 17 anos e com outros jovens foi morto em Cabula, Salvador. A avó expõe sua dor. A dor da mulher  pobre e preta não repercute na sociedade. Por quê?

 

 

(...) Desde o dia 6 de fevereiro, que Natanael morreu, eu não como mais. Quem me deu comida foram os vizinhos” diz  Dona Marina não tem dinheiro e nem mais ânimo. Quando bota um alimento na boca, a garganta trava e ela vomita. Na lista dos 12 mortos enviada pela Ouvidoria da SSP-BA, os dados de Natanael aparecem com data de nascimento de 16 de novembro 1977, e não 1997.

 O menino morreu e continua morrendo, sendo matado.

Ali, a um nível abaixo da rua, em um precipício de insalubridade, ela levanta a blusa sem sutiã para mostrar as costas coloridas de eczemas que ela diz ser por dormir no chão vermelho da sala, mas que até um leigo em somatização vai apontar como o ódio explodindo através da pele.

Quem vai curar a dermatite de dona Marina? Certamente não é o poder público. “Eu não recebo Bolsa Família, nem um centavo do governo, pelo contrário, pago imposto para ver a polícia matando meu filho”. É difícil imaginar como ela vai dar conta daquele acúmulo de encomendas, das blusas finas e brancas de crepe, que cerze por R$15 e depois vê revendidas por dez vezes mais na vitrine do shopping.

Dos 12 mortos por serem “assaltantes de banco”, apenas um tinha passagem pela polícia: brigas no carnaval e porte de peixeira. Além de Natanael, outros dois eram menores de idade. A 500 metros da casa de Natanael e a 800 metros da região do Horto, onde ele foi morto com mais 11 (em um paredão que alguns viram vítimas ajoelhadas e de costas) há uma agência da Caixa e um banco 24 horas em supermercado que nunca foram explodidos.

Dona Marina, bem reticente, depois de desabafar o gasto dos 150 reais que usaria para pagar a cesta básica em flores que adornaram o caixão do filho-neto, decidiu abrir a corrente do portão de casa e minutos depois escancarava o coração crivado de ódio, sangrando de indignação. É quinta-feira após carnaval e ela está revoltada, tem sangue no olho, como dizem os moradores da Vila Moisés e de quase toda a periferia de Salvador. O motivo foi ter ouvido um apresentador veterano de televisão mais uma vez associar os mortos do Cabula a assaltante de bancos.

“Veja se traficante de drogas dorme em um quarto desses, veja se assaltante de banco vai aceitar não ter um armário decente. Esse computador aqui eu comprei no G Barbosa, paguei de 15 vezes é só eu pegar a nota aí pra você ver”, esbraveja ela, mas está claro que pelo volume da voz ela não quer atingir os ouvidos dos jornalistas que estão ali perto. Não daqueles, mas de outros que sempre ficam de longe para emitir sua opinião.

Não há duas histórias a serem contadas.(...)