Uma década sem o Demiurgo do Brasil

19/11/2014 06:54 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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Dia 20 de novembro de 2004, apanhei um ônibus da companhia Real na Avenida Atlântica, em Copacabana, em direção ao aeroporto do Galeão. Era uma manhã nublada de sábado. Tinha passado a semana na antiga capital federal para participar do Encontro de Administração Pública e Governamental [ENApG], que dava seus primeiros passos para se tornar um dos maiores eventos do país na área.

No confortável ônibus, liguei meu aparelho de walkman, precursor desses modernos MP players. Elevei o volume e logo escutei, através de uma rádio local, a notícia sobre o falecimento do maior pensador social brasileiro, Celso Furtado.

Minha primeira reação foi de muita surpresa, pois Furtado para mim, particularmente, era uma daquelas pessoas que apesar de carne e osso, já era imortal pela sua extensa obra e forte influência na minha formação, como intelectual e “cidadão do mundo”. De imediato, pensei em solicitar uma parada do ônibus e descer para acompanhar o velório que aconteceria no domingo, na suntuosa Academia Brasileira de Letras, onde ele ocupara a cadeira de número 11, compondo o quadro de imortais da instituição. Refleti melhor e conclui: sua obra, seu exemplo de vida e sua contribuição ao país eram os aspectos mais importantes que deveria conservar e ter como referência, e não algumas cenas de um funeral com muitas homenagens e bastante prestigiado.

O único contato pessoal com Furtado tinha sido um cumprimento muito rápido em início de junho de 1999, no Seminário Internacional realizado na SUDENE, Recife, para comemorar os 40 anos da instituição e seus 80 anos. Fiquei numa longa fila aguardando minha vez para cumprimentá-lo e arrancar-lhe uma dedicatória no livro Teoria e Política do Desenvolvimento do Econômico [edição mais recente pela editora Paz e Terra, 2000].

A fila andava ao mesmo tempo em que pensava: “como abordar aquele homem que era uma celebridade internacional e quase um mito para muitos? O que dizer-lhe?” Lembrei-me então de uma antiga namorada que seu avô-materno tinha estudado com Celso Furtado na década de 1930, no tradicional colégio Liceu Paraibano, localizado em João Pessoa. Dr. Diniz, como se chamava o septuagenário e ex-desembargador paraibano, sabendo que fazia à época mestrado em economia, me relatava suas histórias e impressões do também paraibano Furtado. Pronto, tinha achado a desculpa ideal.

Ao me aproximar fui logo abrindo a conversa: “mestre Furtado, lhe trago da Paraíba um forte abraço de uma pessoa que estudou com o senhor quando muito jovem, Dr. Diniz!” Ele parou, me fitou nos olhos com aquela seriedade e aparência carrancuda, pensou um pouco, abriu um sorriso largo e ainda perguntou: Dr. Diniz, o desembargador? Ele ainda fica muito corado quando cai nas gargalhadas? Pronto, caímos juntos em sorrisos, conversamos mais um pouco que até esqueci-me do autógrafo. O restante da fila deve ter se perguntado: quem seria aquele garoto rindo à toa com o mestre, enquanto todos que passavam à sua frente pouco tempo ficavam? Meses depois contei sobre esse momento para o Dr. Diniz e conferi sua face rosada; o velho mestre aos 80 anos tinha uma lucidez incrível.

Entretanto meu maior interesse na obra de Furtado foi coincidentemente dentro de um ônibus, em direção à cidade de Patos, no alto Sertão da Paraíba. Fui proferir uma palestra de abertura dos trabalhos acadêmicos anual de uma faculdade local, em algum mês de 1998. Já tinha ganhado de presente na passagem de meu aniversário sua Obra Autobiográfica [Paz e Terra, 1997] e devorado seus três volumes em apenas dois meses.

Naquele momento pensei em desenvolver um projeto de doutorado versando sobre a vulnerabilidade externa brasileira à luz da teoria furtadiana, principalmente utilizando a teoria que tratava do mimetismo cultural brasileiro que influenciava, estruturalmente, nas condições do nosso processo de desenvolvimento econômico. Cheguei a construir o documento e enviar para um professor do Instituto de Economia da Unicamp, com objetivo de receber as devidas críticas e conferir se o projeto era viável. Recebi um excelente feedback, mas por força do destino, no começo dos anos 2000, recém concluído o mestrado, fui parar na Bahia; troquei o planalto paulista pelo calor da terra e da Baía de Todos os Santos.

Apesar de ter frustrado meu objetivo de fazer doutorado levando adiante um projeto com forte balizamento na obra de Furtado, sua contribuição sempre me perseguiu e quando sempre busco reler e beber novamente em suas ideias. Não por acaso que nosso recente livro, Ensaios sobre o Subdesenvolvimento e Economia Política Contemporânea [Hucitec Editora, 2014], retoma uma categoria central na sua produção científica.

Muito já se produziu e publicou-se a respeito de seu pensamento e grande influência à interpretação da formação econômica brasileira, seus problemas estruturais e dilemas de seu subdesenvolvimento, um fenômeno visto como uma anomalia, ao contrário de uma simples etapa histórica rumo ao progresso econômico e social. A contribuição que tem dado o Centro Internacional que leva seu nome, com sede no Rio de Janeiro, é primorosa porque além de se preocupar com a difusão de análises e propostas de políticas para o desenvolvimento econômico, reúne um farto banco de dados e trabalhos, acadêmicos e científicos, que valorizam e tornam acessíveis as contribuições teóricas do autor ao público em geral. [Para acessar o Centro basta clicar aqui]

Entretanto, dos muitos trabalhos que tratam da vida, obra e sua contribuição ao pensamento social brasileiro, gostaria de destacar dois, além de sua própria produção autobiográfica, apontada logo acima. O primeiro é o livro de Francisco de Oliveira, A Navegação Venturosa: ensaios sobre Celso Furtado [Boitempo Editorial, 2003]. A forma respeitosa como Chico de Oliveira trata a obra de Furtado, mesmo ao seu modo crítico e sagaz, é uma excelente oportunidade para quem ainda não conhece [ou pouca familiaridade possui], a obra e principais argumentos teóricos do paraibano da cidade de Pombal. É desse livro que extraímos o título desse artigo.

O segundo livro foi organizado por Rosa Freire d’Águiar, responsável direta pela criação do Centro Internacional que nos referimos e viúva de Furtado. O livro Anos de Formação, 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado [Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2014], pode ser considerado o quarto volume da biografia do autor. Nele, encontramos textos inéditos e surpresas muito agradáveis do processo de formação de um jovem obcecado em conhecer o mundo, entender seus problemas, formar juízo de valor e desenvolver convicções inabaláveis.

O livro organizado por Rosa é realmente uma grata surpresa; seu lançamento caiu muitíssimo bem nesse ano que se comemora uma década que o pensamento social brasileiro foi gravemente desfalcado, que ficamos sem o Demiurgo do Brasil.

Felizmente, tenho a satisfação de possuir uma excelente relação com o Centro Celso Furtado, com a Rosa Freire d´Águiar, realizando aquele sonho de estudante de economia de conhecer ainda mais seu mito intelectual, mesmo discordando de uma ou outra contribuição sua. Discordâncias essas somente possíveis por contar com a possibilidade de estudar sua obra, compreender seus argumentos e aprender com Furtado que a ciência avança em razão, justamente, da ousadia intelectual, liberdade de pensamento e pluralismo teórico. 

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