A Macroeconomia Marxista

10/07/2014 21:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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O artigo que segue foi publicado originalmente na versão impressa de junho do Jornal dos Economistas do Conselho Federal de Economia do Rio de Janeiro, na série Clássicos da Macroeconomia, por solicitação de sua diretoria [clique aqui para conferir o original]. Agradecemos a leitura atenta e crítica dos professores Anderson Henrique [UFAL/Campus Delmiro], Douglas Alencar [CEDEPLAR/UFMG], Marcelo Carcanholo [UFF] e Relnaldo Gonçalves [Instituto de Economia da UFRJ].

A Macroeconomia Marxista

Desde a década de 1970 o modo de produção capitalista vem se revolucionando, impondo fundamentais mudanças e adequando novas formas de relações sociais diante de transformações aceleradas no conjunto das forças produtivas. O progresso tecnológico baseado na microeletrônica redimensionou os meios de produção, acentuando a exploração da força de trabalho e contrariando as otimistas perspectivas de John Maynard Keynes. Em seu famoso ensaio Possibilidades Econômicas de Nossos Netos [1930], o economista inglês defendia que no século XXI seríamos liberados do trabalho árduo e castigante e adentraríamos na terra prometida, numa Nova Era, onde o tempo seria melhor distribuído entre a atividade produtiva, a contemplação, o prazer e a livre criatividade [clique aqui para acesso ao texto].

No último quartil do século XX, transformações políticas importantes redefiniram o comportamento social e econômico de muitos sistemas societais. Mais de um terço da população sobre o globo agoniza na pobreza e o processo de acumulação de capital impõe limites intransponíveis à biosfera.

O renascimento do pensamento liberal, na esteira de mais um movimento de internacionalização do capital [leia-se globalização], abriu um período de contrarrevolução conservadora. No mundo econômico, as instituições multilaterais, como FMI, Banco Mundial e OMC, a “Santíssima Trindade” do capitalismo contemporâneo, orientavam, sob ameaças de sanções, os países da periferia a se integrarem à Nova Ordem Internacional, comandada pelos EUA e seu novo ciclo expansivo, baseado no desenvolvimento acelerado das atividades financeiras-creditícias.

Nesse contexto, um amplo conjunto de opiniões, análises e argumentos assumiram compromisso intelectual e político de sepultarem correntes analíticas mais críticas, proclamando “o fim das ideologias”, cantando em louvores à objetividade e neutralidade teórica. Os ideólogos do neoliberalismo afiavam seus armamentos teóricos e ideológicos objetivando derrotar qualquer oponente crítico e histórico.

Na esteira da contrarrevolução conservadora, o pensamento marxiano com suas diversas derivações deu a impressão de arrefecimento intelectual. Somente impressão. Pelo contrário, um pensamento marxista ou tomando ele como base se desenvolveu, ganhando importância analítica nos últimos três decênios. Os interesses pelos estudos e leituras nesse campo aumentaram, sobretudo na nova fase de financeirização da riqueza que desembocou nas crises econômico-financeiras que atingiram os Estados Unidos [2007-2009] e Europa [2011-2012].

Os estudos marxistas mais contemporâneos resgatam dentro muitos aspectos, o essencial da teoria marxista para explicar as vicissitudes do capitalismo contemporâneo e as contradições postas. Da teoria marxiana se toma como premissa uma contradição fundamental do modo de produção capitalista: sua tendência, ad infinitum, de produzir mercadorias conflita com a pobreza e a restrição do consumo das massas. De outro modo, sua elevada capacidade de desenvolver as forças produtivas, aumentando a produtividade do sistema, esbarra na capacidade da própria sociedade em absorver a miscelânea de produtos que são despejados todos os dias nos circuitos da circulação. Essa contradição revela porque o capitalismo é um sistema inerentemente instável. No Livro II de O Capital, Karl Marx antecipa, em quase meio século, o problema da insuficiência da demanda, a preocupação central da teoria geral de Keynes, que o mesmo resgata do pároco Thomas Malthus, talvez para não se declarar um leitor atento à produção do velho Mouro.

Entretanto, será nos dois primeiros volumes do Livro I que Marx desenvolverá o núcleo de sua análise do processo de produção de capital. Com base na teoria do valor-trabalho e na lógica dialética, aplicadas às categorias econômicas, ele desmontou os alicerces que sustentavam as premissas da economia burguesa de sua época. Diferentemente dos princípios liberais de Adam Smith, que percebiam uma sociedade econômica que tendia ao equilíbrio social e econômico determinado pelo comportamento egoístico dos indivíduos, e completamente contrário à chamada Lei de Say, que advogava a harmonia entre produção e consumo na máxima “a oferta cria sua própria procura”, Marx demonstrou que no capitalismo a dissociação entre produção e consumo era inerente ao seu funcionamento.

Na teoria marxiana as condições materiais de produção da riqueza na sociedade capitalista articulam a produção, distribuição, a troca e consumo. A circulação é a troca em sua manifestação geral. Esse todo articulado representa os elementos fundamentais da criação de riqueza no sistema, portanto, separá-lo implica em dificultar ainda mais a compreensão essencial do funcionamento da ordem capitalista, como a riqueza é produzida e apropriada privadamente. Mesmo reconhecendo que esses momentos não são idênticos [produção, distribuição, troca e consumo] eles constituem elementos de uma mesma totalidade: o modo de produção capitalista. Ainda, reconhecendo a importância de cada um deles, é no âmbito da produção que acontece a criação de riqueza acontece.

De maneira sumária podemos dizer que Marx revelou que o capital antes de aparecer como uma categoria econômica trata-se de uma relação social. Essa relação é estabelecida, continuamente, com intuito de produzir valor. Diferentemente de outros modos de produção, no capitalismo essa relação social de produção é estabelecida entre trabalhadores, que vendem sua força de trabalho [em troca de salários], porque contam somente com essa “propriedade” para lhes garantir a sobrevivência, e os empresários capitalistas, proprietários dos meios de produção [instrumentos e ferramentas de trabalho, equipamentos, máquinas, terras etc.]. Com a propriedade do dinheiro, em última instância, o empresário capitalista compra a força de trabalho [que será definido como capital variável - cv] e mantêm a propriedade sobre os meios de produção [denominado capital constante - cc].

Estabelecida a relação trabalhista contratualmente, os capitalistas põem a força de trabalho [ft] em operação na produção de mercadorias, juntamente com os meios de produção [mp]. No esquema abaixo, podemos ver que o capitalista, possuidor do dinheiro [D], adquire mercadorias [ft+mp], junta-as no processo produtivo [P], com objetivo de produzir novas mercadorias, consequentemente com valores superiores [M’] às mercadorias adquiridas [M=mp+ft]. Uma vez produzidas, as novas mercadorias, serão trocadas por dinheiro [D’] no processo de comercialização. Portanto, no esquema abaixo, temos 3 momentos. D-M e M’-D’ tratam-se de relações de troca, onde o primeiro momento representa um ato de compra e o segundo um ato de venda. Eles significam simplesmente a circulação das mercadorias, sem importância alguma na determinação do valor das mesmas, ao contrário do que apregoa o pensamento econômico convencional. O valor, portanto, é criado, conforme a teoria do valor-trabalho, no momento da produção, representado abaixo pelo circuito M-P-M’.

Portanto, no ciclo D-M---P---M’-D’ Marx demonstrou a capacidade do sistema capitalista de reproduzir valor em escala ampliada. D’ contém valor superior ao dispendido inicialmente [D], e assim sucessivamente a cada ciclo. A diferença fundamental, D’-D, representa o lucro do empresário capitalista. Ele o calcula observando o resultado líquido de toda a operação. Aqui reside o ponto fulcral da teoria. Marx tinha em mente que não bastava uma teoria do valor-trabalho para explicar o funcionamento do modo de produção capitalista. Mais que uma avaliação substancial de que as mercadorias possuem valores em razão da quantidade de trabalho contida nas mesmas, medida pelo tempo gasto em sua produção, ele apresentou uma teoria da exploração da classe trabalhadora.

Ao contrário do cálculo contábil do empresário capitalista, a base do lucro reside na diferença entre o que ele paga, na forma de salário, ao trabalhador para executar sua força de trabalho e a quantidade de valor que esse trabalhador foi capaz de produzir durante uma determinada jornada de trabalho, levando em conta também as circunstâncias e utilização de equipamentos auxiliares. O salário deve corresponder a um valor suficiente para que os trabalhadores adquiram bens necessários à sua reprodução enquanto seres. Sendo assim, o salário representa apenas uma fração do valor total que eles são capazes de produzir ao longo do tempo de execução da força de trabalho. Em outras palavras, a verdadeira base dos lucros repousa na exploração da força de trabalho, a expropriação dos resultados do trabalho alheio, subtraindo do valor total criado uma fração que os trabalhadores absorvem na forma salários. Nessa linha de raciocínio, o resultado líquido que é apropriado pelo empresário capitalista chama-se mais-valor [ou mais-valia].  

 A empresa capitalista é conduzida pelo espírito de maximização dos seus benefícios. Em última instância, o sistema se movimenta não com o objetivo geral de produzir mercadorias para satisfazer as necessidades de consumo, mas essencialmente, com a finalidade de atender aos interesses de acumulação de capital [criação e apropriação de valor]. Isso significa, portanto, reproduzir, continuamente, as relações sociais de produção. O processo de acumulação de capital passa a ser tanto uma finalidade subjetiva quanto uma força motriz de todo o sistema. Então, importa realizar a venda das mercadorias produzidas, pois elas carregam o lucro capitalista. As crises da economia capitalista revelam-se quando ocorrem fortes rupturas entre a produção e consumo, algo inimaginável na teoria neoclássica baseada na lei dos mercados de Say.

Os avanços tecnológicos redefinem as relações sociais de produção, modificando e elevando a composição orgânica do capital [a relação entre capital constante e capital variável – cc/cv]. Em razão tanto da luta entre trabalhadores e empresários capitalistas, quanto pela concorrência entre esses, o progresso tecnológico é empregado no sistema produtivo, tornando-o mais eficiente e elevando sua produtividade. Isso ocorre à custa da redução do capital variável em relação ao capital constante. Não significa que o emprego de mão de obra diminuir em termos absolutos. Pelo contrário, pode-se até empregar mais força de trabalho. O que importa são as modificações na relação entre capital variável e capital constante. A taxa de lucro pode cair mesmo não ocorrendo desemprego, basta que a utilização de máquinas, equipamentos etc. cresça em razão maior que o emprego da força de trabalho. Essas alterações, portanto, têm o intuito de elevar a quantidade de mercadorias produzidas, mas acabam modificando a razão entre a taxa de exploração [mais-valor/cv] e a composição orgânica do capital.

 Assim, o emprego dos avanços tecnológicos no sistema de produção capitalista promove, no longo prazo, dissabores que alteram, substancialmente e intensamente, as condições de equilíbrio entre produção e consumo, exigindo fortes ajustamentos, econômicos e políticos. Os resultados gerais são: 1] superprodução de mercadorias; 2] tendência à redução da taxa de lucro do sistema; 3] diminuição relativa do emprego da força de trabalho; iv] elevação da taxa de exploração da força de trabalho; 4] diminuição relativa do consumo; e 5] busca desenfreada pela produção de novos produtos, abertura de mercados e intensificação da concorrência intercapitalista. No capítulo XIV do Livro III de O Capital, Marx aponta as contratendências do sistema à queda da taxa de lucro no longo prazo.

Contrariamente aos teoremas clássico e neoclássico do equilíbrio macroeconômico, Marx demonstrou, portanto, muito antes de Keynes, que o capitalismo é instável por sua condição estrutural de dissociar a produção do consumo. As crises não são meras disfunções macroeconômicas como defendiam os neoclássicos, elas significam epifenômenos das contradições e desequilíbrios inerentes à essência de funcionamento das relações sociais de produção capitalistas.

O processo de valorização da riqueza, por exemplo, através dos circuitos da circulação financeira [especulação], é um sintoma muito característico de que o sistema enfrenta uma crise de realização. Pois, a criação de valor no circuito produtivo tem enfrentado obstáculos muito sérios que acabam empurrando os capitalistas [e o grupo de executivos de importantes empresas] para novas formas de valorização de capital, especialmente de maneira fictícia.

Atento a esse movimento e suas consequências, uma vasta literatura surgiu nos últimos decênios buscando compreender a crise estrutural do capitalismo contemporâneo. Fundamentados ou com alguma inspiração na análise marxiana, esses trabalhos analisam os movimentos recentes de acumulação de capital sob a égide da financeirização, as implicações para a macroeconomia de vários países e suas interconexões internacionais. Mais acessível ao público brasileiro, podemos destacar os vários e importantes trabalhos de François Chesnais, Gerard Duménil, Dominique Lévy, Robert Brenner, Susanne de Brunhoff, Michel Aglietta, Giovanni Arrighi, David Harvey, Reinaldo Carcanholo e Paulo Nakatani.

Referências bibliográficas sugeridas

LAIBMAN, David. Capitalist Macrodynamics: a systematic introduction, London, Macmillan, 1997.

CHESNAIS, François (org.). A Finança Mundializada. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

AGLIETTA, Michel. Macroeconomia Financeira. Vols. 1 e 2. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

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