Desenvolvimento às avessas: uma resenha crítica

30/05/2014 06:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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Gérard Dumenil e Dominique Lévy, dois importantes membros do Centro Nacional de Pesquisa Científica Nacional de Paris, França, lançaram no Brasil o livro A Crise do Neoliberalismo [Editora Boitempo, 2014]. Um material de fôlego que percorre historicamente as principais fases contemporâneas de instabilidades crônicas do capitalismo. Desde 1890, o sistema avança com solavancos muito graves, passando pela Grande Depressão de 1930 e a crise da década de 1970, com a quebra das regras de Bretton Woods, que estabeleciam o gerenciamento do sistema financeiro internacional, ingressando no período neoliberal, com baixas taxas de crescimento e reorganização do sistema sob a hegemonia norte-americana.

Para os autores, o conceito de neoliberalismo é muito claro. Trata-se de “uma ordem social destinada a gerar rendimentos para as faixas superiores de renda, não para investimentos na produção, muito menos para o progresso social” [p.32]. As consequências dessa ordem social, que se estabeleceu no início da década de 1980, tem sido corroborada pelo livro Capital in the Twenty-First Century, do economista francês Thomas Piketty, publicação que virou sucesso mundial e já está sendo traduzida para o português.

No início da década de 1990, a economia e sociedade brasileira se conectaram definitivamente nessa ordem. Muito já foi escrito sobre o assunto, discutindo o processo e padrão de desenvolvimento do país dentro desse contexto. O mais recente e importante trabalho tratando sobre isso foi publicado ano passado, pelo professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Reinaldo Gonçalves.

Para Gonçalves, o modelo de desenvolvimento brasileiro atual, denominado Modelo Liberal Periférico (MLP), inicia-se em 1995. Para ele o MLP determina um tipo de desenvolvimento às avessas com as seguintes características: fraco desempenho econômico no médio prazo; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas em eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política dessa trajetória, observam-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições; e sistema político corrupto e clientelista.

Gonçalves divide o livro em oito capítulos, incluindo as conclusões. Nos dois primeiros o autor examina a trajetória do desenvolvimento econômico brasileiro e constrói uma visão global do nosso processo de formação, do sistema colonial até a instauração de dinâmica do MLP.

No terceiro capítulo ele analisa o desempenho macroeconômico nos diferentes períodos históricos e nos diversos governos desde a proclamação da República. Os capítulos quatro e cinco representam a espinha dorsal do livro e discutem a tese central de que o MLP é responsável pela regressão econômica do país, e não pelo avanço no campo do desenvolvimento econômico e das conquistas sociais.

O MLP acentua-se com o governo petista, a partir de 2003. Portanto, ao contrário do período 1930-70, quando nos reinventamos como nação e saltamos para uma economia industrial moderna, com o MLP entramos num período denominado pelo autor de Desenvolvimentismo às Avessas. O resultado da análise é de difícil contestação: durante o governo petista os problemas estruturais do subdesenvolvimento econômico persistem e se aprofundam: desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização das exportações, maior dependência tecnológica, desnacionalização produtiva, perda de competitividade internacional, maior concentração do capital, dominação financeira dos principais centros de decisão do país e, sobretudo, crescente vulnerabilidade externa estrutural.

No quinto capítulo o foco são os desequilíbrios de fluxos e estoques referentes às relações econômicas internacionais do Brasil. Certamente não encontraremos abordagem semelhante em nenhum dos tradicionais manuais de economia internacional, tampouco na literatura de economia brasileira. A conclusão é enfática: a situação brasileira é ainda mais grave porque o custo do passivo externo para o país é muito maior do que o retorno dos ativos externos do país.

No sexto capítulo o autor avalia os custos da gestão das reservas internacionais. Para Gonçalves, esta gestão não obedece, rigorosamente, a um plano estratégico; é aleatória e implica elevados custos cambiais e fiscais. O sétimo capítulo argumenta que, embora tenha ocorrido queda da desigualdade de renda e de pobreza durante o governo Lula, isto não se deu nos marcos da distribuição funcional da renda, ou seja, a diferença entre os rendimentos do capital e do trabalho continua muito grande.

O autor destaca, ainda, a necessidade de o MLP obter condições de governabilidade e legitimidade do poder dos grupos dirigentes, o que somente é possível com a ampliação das políticas sociais focalizadas, em detrimento da cobertura universal dos direitos. No entanto, Gonçalves alerta que a ampliação dessas políticas esbarra nos limites dados pela vulnerabilidade externa do país.

Nas conclusões, todo o conteúdo do livro é passado em revista, só que de uma maneira contextualizada historicamente. E a crítica é reforçada pelo argumento de que o MLP é uma estratégia de desenvolvimento muito aquém, em termos de resultados, daquela adotada no período nacional-desenvolvimentista.

O mais novo livro de Gonçalves, portanto, chega em momento bastante oportuno. As mobilizações sociais ganharam as ruas ano passado e demonstraram que, em muitos aspectos, o país parece não avançar. Como o livro foi escrito antes desses eventos, Gonçalves parece antecipar, através de uma crítica radical e realista, o que as manifestações populares querem dizer. Por essa razão, a leitura do livro poderá ter uma utilidade seminal no debate que de agora em diante ficará ainda mais febril, porque contribui para elevar o nível da discussão, despertando para uma necessária visão mais crítica e menos alienante.

[Versão primária desse texto foi publicada no Jornal dos Economistas do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, em setembro de 2013. Clique aqui para conferir, pois nessa edição do Jornal tem um excelente debate sobre neoliberalismo]

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