Desenvolvimento sem sacrifícios

16/05/2014 06:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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O ano era 1962, se aproximavam as eleições ao final para renovação do Congresso nacional e escolha dos governadores. A discussão entre o modelo político e gestão era acirrada entre os defensores do parlamentarismo e presidencialismo.

João Goulart preocupava-se em restaurar o presidencialismo. A direita no país se organizou em torno da criação do Instituto Brasileiro de Ação Democrática [IBAD], que tinha função de aglutinar recursos para financiar a campanha de candidatos reacionários.

Celso Furtado, ministro do Planejamento do governo Goulart, despachava continuamente com o presidente. Defendia com ardor a necessidade das reformas de base no país, acreditando que a crise das instituições, naquele contexto, poderia ser uma ótima oportunidade para apresentar um programa de reformas estruturais mais consistente, principalmente se contasse com a defesa de líderes progressistas.

O quadro institucional era muito precário. As reinvindicações políticas partiam de todos os lugares. O quadro de pessimismo era pintado com todas as cores e ameaçava as instituições democráticas, que já se encontravam em estado de convalescência, desde a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. As correntes mais conservadoras e retrógradas se fortaleciam no intuito de conspirar contra o governo Goulart, tido como popular, herdeiro do Getúlio Vargas, de espírito nacionalista e desenvolvimentista, e muito inclinado às reivindicações sociais e trabalhistas.

Furtado sugeriu à Goulart uma reunião com os principais líderes progressistas para que, por sua vez, dialogassem com os candidatos ao parlamento. O objetivo era conscientizá-los para as necessidades das reformas de base e as ameaças à ordem democrática, inclusive impedimentos que poderiam surgir ao acesso dos recém eleitos ao Congresso, para exercerem plenamente seus respectivos mandatos.

Coube a Furtado redigir um manifesto chamando atenção às ideias essenciais sobre as reformas e o delicado contexto político e institucional. O objetivo era construir consensos em torno de um compromisso com as mudanças e necessidades de avanços que o país tanto precisava para superar algumas barreiras do subdesenvolvimento. Destaco um dos trechos desse manifesto entregue à Goulart na época:

“[...] o desenvolvimento acarretou injustiças sociais cada vez mais flagrantes. Para justificar tal situação, criou-se a falácia de que o desenvolvimento sempre exige ‘sacrifício’ da população. O verdadeiro sacrifício, quem exige é a estagnação, como sabem as populações do Nordeste e das outras regiões marginais do país. Somente existe sacrifício no desenvolvimento quando seus frutos não são partilhados com todos aqueles que deram a sua cota de esforço. No Brasil, país em que os preços dos produtos de consumo básico crescem mais do que os de objeto de luxo, e os ricos pagam relativamente menos impostos do que os pobres, o sacrifício é real” [FURTADO, Celso. A Fantasia Desfeita. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997]

Essa assertiva é muito apropriada para refletirmos sobre nossas condições econômicas atuais. Não tenho dúvidas de que as injustiças sociais no país ainda são profundas, mas elas, pela primeira vez, sofreram uma inflexão nos últimos anos. O acesso aos bens básicos através da expansão do consumo de massa é perceptível em todos os lugares por onde andamos. No interior do Nordeste então, isso é facilmente observado.

Os empresários dos setores de comércio e serviços têm muitas queixas justificadas contra nosso complexo e injusto sistema tributário, contra o crescimento da violência urbana, principalmente roubos e assaltos nos principais centros comerciais das cidades, a falta de mão de obra qualificada etc. Mas não podem se queixar, de maneira alguma, da expansão na última década do volume de vendas e receitas das respectivas empresas, quadro bem diferente da estagnação e baixo crescimento verificados nas décadas de 1980-1990. O quadro abaixo é uma prova desse dinamismo que permitiu o surgimento de muito pequenos e médios empresários, o crescimento da riqueza de outros tantos e a consolidação dos mais empreendedores e inovadores.

O sacrifício atual da grande maioria da população não se concentra, necessariamente, na falta de acesso aos bens de consumo, mas na acessibilidade dos bens públicos essenciais. Bens esses que sofreram um brutal sucateamento nas últimas três décadas nesse país. Nossos combalidos sistemas públicos de saúde, educação, segurança e transporte agora estão sob pressão em virtude do crescimento acelerado das demandas da sociedade. Demandas essas que se ampliaram também porque os estratos inferiores puderam melhorar com a expansão da renda, medida pelo seu conceito per capita como o quadro abaixo visualiza.

É óbvio que esse movimento de ascensão provoca tensões e conflitos no seio das classes médias tão acostumadas, historicamente, a utilizarem os serviços públicos [não necessariamente estatais] isoladamente. Agora têm que compartilhar aeroportos, hospitais, estradas, restaurantes, shoppings etc. com os recém chegados aos asfaltos oriundos dos chamados aglomerados subnormais [termo sofisticado usado pelo IBGE para conceituar as favelas, grotas etc.]. Quanto às classes de elevada riqueza nesse contexto, essas não têm do que reclamar, pois estão desterritorializadas a bastante tempo [para utilizar um termo bastante usual do filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman] e desfrutam dos elevados padrões de consumo a disposição nos principais centros ricos do capitalismo global.

Apesar das dificuldades impostas pelas principais variáveis macroeconômicas como o elevado custo financeiro de rolagem dívida pública sobre o orçamento da União, pelo câmbio apreciado, pelos elevados juros, baixa capacidade de investimento do Estado etc., a situação econômica do país é bem mais favorável que a apresentada pelas principais economias do mundo, com exceção da China. Ninguém em sã consciência pode comparar o nosso padrão e qualidade de vida com os EUA e Europa. Mas pode argumentar, sem titubear, sobre a destruição do que restava do Estado de Bem-Estar social europeu [Welfare State] nas últimas décadas, que foi justamente responsável pelo padrão de vida de boa parte da sociedade ocidental do velho continente. Também pode demonstrar o processo avassalador de crescimento da desigualdade de renda nos EUA, ameaçando alguns dos principais pilares de sustentação do país como nação, como a ordem democrática e a influência da classe média no conjunto de suas instituições.

Nossos problemas estruturais, como dependência tecnológica e científica, forte concentração da pauta exportadora, elevado nível do passivo externo [compromissos financeiros e dívidas com o exterior] e encolhimento do setor industrial, são desafios que podem se tornar oportunidades fantásticas se bem formulado um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional. Esses principais obstáculos, tanto de ordem conjuntural como estrutural, somente podem ser superados com um esforço coletivo de construção, com as forças mais progressistas desse país liderando as alianças hegemônicas, pois devemos preservar o caráter democrático dentro da ordem capitalista.

Como no passado mais recente, o desenvolvimento não deve ser associado ao sacrifício da população, como defendem alguns economistas que sugerem políticas impopulares para a continuidade do nosso modelo de desenvolvimento liberal-periférico, para usar um outro termo muito apropriado e desenvolvido pelos economistas Luís Filgueiras [UFBA] e Reinaldo Gonçalves [UFRJ].

A “falácia de que o desenvolvimento sempre exige ‘sacrifício’ da população”, conforme apontado por Furtado na década de 1960, volta com muita força quatro décadas após. É preciso reforçar a crítica responsável, exigir mais de onde paramos, avançar nas conquistas sociais e na redução da desigualdade de renda, combater a injustiça tributária, desvencilhar a política macroeconômica das armadilhas dos juros altos, câmbio valorizado e superávit primário, e elevar os investimentos estatais como indutores dos investimentos privados, sobretudo nas áreas essenciais que foram alvos dos protestos sociais no ano de 2013, expandindo, sobremaneira, os serviços públicos. É preciso e possível desenvolver o país sem causar tantos sacrifícios, principalmente aos mais vulneráveis que compõem a grande maioria da população desse país.

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