Estado, Economia e Eleições em 2014

09/05/2014 06:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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As mobilizações de junho de 2013 tiveram seus efeitos. Chamou atenção do Brasil em geral para vários problemas estruturais. Problemas esses que a maioria absoluta da população enxerga no dia a dia através, principalmente, do funcionamento [ou não] dos serviços públicos nas três esferas governamentais, federal, estadual e municipal.

O indivíduo comum dificilmente consegue escapar das agruras que os problemas cotidianos os aprisiona. A maioria faltou-lhe tempo ou oportunidades de estudo para que pudesse alcançar melhor situação na escada social e econômica; falta-lhe tempo para oxigenar sua consciência, tomada pelas preocupações com as contas que têm que pagar, a competição no emprego, problemas com a saúde, sem contar a força da grande mídia lhe empanturrando notícias sensacionalistas etc. Outros tantos romperam com a barreira da ignorância educacional, mergulhando no mundo específico das milhares de especialidades profissionais. Situação característica de uma sociedade que convive com o aprofundamento da divisão social do trabalho e imprime uma lógica de valorização do individualismo. Esses últimos mais esclaredidos infelizmente não conseguem visualizar a sociedade de forma mais sistêmicas, fazer as relações entre os problemas particulares e os gerais, compreender melhor o funcionamento de nossas estruturas.

Os problemas estruturais brasileiros dizem respeito, e muito, às condições de nosso subdesenvolvimento periférico. Somos um capitalismo subdesenvolvido, forjado no século XX com amplo apoio e participação do Estado brasileiro, no contexto de uma conjunção de forças, políticas e econômicas, no exercício da hegemonia pelos setores industriais e modernas e ricas classes urbanas. Esses interesses dominavam e submetiam aos seus as tradicionais oligarquias agrárias, que comandaram o país durante o regime primário-exportador. Claro que essa submissão era mais formal do que prática, pois fazia parte de um grande pacto por cima, sem a participação das camadas mais populares do país. Existiam algumas poucas e estreitas fendas pelas quais uma ou outra facção da classe média brasileira era autorizada a entrar, entretanto com limitadas possibilidades de influência no jogo de poder nacional.

O que ficou conhecido como nacional-desenvolvimentismo que vigorou entre 1930 e 1979 caracterizou-se como um modelo de desenvolvimento econômico em que os capitães da indústria, estrangeira e nacional, comandaram o processo de transformação da realidade produtiva do país. Como falamos acima, isso não poderia ter alcançado relativo êxito sem a participação direta do Estado brasileiro, apoiando fortemente a expansão industrial, seja com subsídios fiscais ou concessão de créditos e financiamentos, participando diretamente na produção de bens industriais e intermediários, responsabilizando-se por determinados serviços, ofertando infraestrutura e logística necessárias e com suas instituições ministeriais e autarquias criadas no bojo da política varguista.

Esse modelo deu sinais de esgotamento na década de 1960. O golpe militar, em 1964, emergiu com o objetivo estrito de colocar ordem na casa que estava em plena efervescência, porque os avanços e conquistas econômicas não se traduziam em direitos sociais e oportunidades de bem-estar. Mas a débâcle do modelo nacional-desenvolvimentista somente ocorreria no início da década de 1980, com a crise da dívida externa dos países do Terceiro Mundo [expressão usual da época].

Os anos 1980 foram de depuração e de várias tentativas de estabilização do cenário econômico interno, conturbado fortemente pela variante internacional. Em ação no país, no decorrer das várias negociações de acordos com FMI e Banco Mundial, o chamado Programa de Ajustamento Estrutural [PAE] envolvendo mudanças institucionais importantes no plano da ação do Estado brasileiro. Entretanto, ainda resistiam funções estatais muito estratégicas objetivando assegurar os ganhos econômicos produtivos e, principalmente, rentistas dos principais grupos e agentes econômicos do país, lhes “salvando” do baixo crescimento econômico crônico e das taxas elevadas de inflação. O desmonte das estruturas do Estado brasileiro já estava em curso durante esse período.

Como uma das tábuas de “salvação”, as finanças públicas foram comprometidas no momento da estatização da dívida externa privada, principalmente a partir de 1983, fazendo crescer, enormemente, a participação estatal no estoque de dívidas contraídas nos organismos internacionais e bancos estrangeiros.

Outro aspecto que combaliu as finanças públicas do Estado foi a expansão da dívida pública interna, alimentada pela aquisição dos saldos exportadores, movimento que promovia as operações de overnight, ou seja, operações de curtíssimo prazo com títulos públicos comercializados pelo Banco Central, com o intuito de retirar o excesso de dinheiro em circulação do sistema econômico para não causar ainda mais inflação.

Por sua vez, as empresas estatais foram usadas largamente para controlar preços e subsidiar demais setores econômicos privados, fornecendo bens e serviços para reduzir-lhes os custos de produção etc. Ou seja, a máquina estatal, na década de 1980, mais uma vez, assumiu seu desiderato em conduzir adiante o capitalismo subdesenvolvido brasileiro, resolver suas contradições e proteger-lhe nas vicissitudes, bruscas e profundas mudanças da economia internacional.

A partir da década de 1990, entramos numa nova fase das determinações nas relações umbilicais entre Estado, economia e sociedade no Brasil. É importante frisar que o Estado como instituição não é uma cabeça separada do corpo, da sociedade, como nos alertou um pensador do século XIX, que muito amedronta, ainda, o pensamento social conservador e reacionário. Ou seja, o Estado não existe sem a sociedade e vice-versa, principalmente no capitalismo contemporâneo. Essa relação é ontológica e as modificações ocorrem nas determinações organizacionais e em suas funções. Portanto, o Estado não é um elemento externo à sociedade como desejam, em seus modelos de economia pura, os integrantes da ciência considerada triste [Economia], na compreensão de Thomas Carlyle historiador escocês do século XIX.   

Retornando ao ponto, desde a década de 1990 que o Estado brasileiro, assim como no período 1930-1979 e na década de 1980, assumiu novas funções e modelos organizacionais no contexto de uma nova ordem econômica internacional de desenvolvimento das forças capitalistas. No âmbito interno a cada país, essas funções se estruturam baseadas nas especificidades sociais, políticas e econômicas das relações de poder e interesses momentâneos.

Dois recentes e breves artigos tocam no âmago da questão das relações entre o Estado e os interesses econômicos, dentro do movimento de acumulação de riqueza capitalista contemporânea com prevalência das formas rentistas.

Destacamos, primeiramente, o comentário ao pronunciado livro O Capital no Século XXI de Thomas Piketty, feito por Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da UNICAMP, em artigo publicado no Jornal do Brasil sob o título O Capital Fictício no Século XXI [Clique aqui]. Nesse artigo Rossi aborda, sinteticamente, como a riqueza têm crescido com base na expansão das operações financeiras assentadas, principalmente, no direito contratual dos fluxos de rendas futuros permitidos pelo endividamento de determinados agentes econômicos.

Os fluxos de renda oriundos de relações financeiras contratuais são avaliados, permanentemente, pelos mercados financeiros, com base em alguns critérios sobre os riscos, solvência, taxas de juros etc. Conforme Rossi aponta, a partir da leitura do livro de Piketty, a renda e riqueza nos países centrais têm crescido, extraordinariamente, a partir do momento em que os mercados de securitização e derivativos de produtos financeiros se desenvolveram. Isso promoveu um ambiente econômico propício à criação de novas fronteiras de acumulação de capital na forma meramente fictícia, sem correspondência necessária com a criação de riqueza em bases materiais. Sobre esse movimento existe toda uma literatura crítica, nacional e estrangeira, bastante sólida e abrangente.

No quadro abaixo, Rossi nos apresenta o descolamento da criação de riqueza, na forma financeira, da produção real nos Estados Unidos. Enquanto o PIB, se aproximou dos US$ 16 trilhões em 2012, o valor dos ativos financeiros nas mãos das famílias norte-americanas cresceu extraordinariamente nas últimas quatro décadas, alcançando a casa dos US$ 60 trilhões. Não é por outra razão que em seu mais recente livro, O Preço da Desigualdade [Portugal: Bertrand Editora, 2013], Joseph Stiglitz argumenta que toda decisão pública, da condução da política monetária à alocação das verbas orçamentária, é fortemente influenciada pela desigualdade extrema de riqueza. Mesmo com a crise financeira de 2007-2009, Wall Street, centro financeiro dos EUA e do mundo, continua influenciando diretamente os destinos do país e seus principais lócus de poder econômico. Essa situação, segundo Stiglitz, está minando a democracia norte-americana.

O movimento de criação de riquezas de maneira financeira-fictícia acontece também no Brasil, principalmente a partir da década de 1990. Alguns importantes economistas ligados ao campo da oposição ao atual governo, têm reforçado o coro na defesa dos "bons princípios da macroeconomia", que enaltecem o compromisso rigoroso com a austeridade fiscal, controle espartano da inflação e câmbio valorizado. Na verdade, implícita nessa discussão, reside a manutenção, com mais ou menos intensidade, do processo de enriquecimento via mecanismos de arbitragem e especulação financeira no Brasil, assumindo a dívida pública um eixo fundamental nesse processo.

Nesse contexto destacamos um segundo artigo intitulado Somos Educados para o Analfabetismo Econômico, escrito e publicado pelo cientista político e pesquisador do IPEA, Antônio Lassance [Clique aqui]. Seu argumenta é que as preocupações econômicas do brasileiro deveriam direciona-se para a execução orçamentária da União, onde realmente se revelam os destinos dos recursos públicos do país. Se isso acontecesse efetivamente a discussão sobre a realização da Copa do Mundo, por exemplo, tornar-se-ia menor e compreenderíamos, com mais nitidez, quem leva larga vantagem econômica no país, absorvendo boa parte do que o contribuinte paga na forma de impostos e contribuições.

Somente a título de esclarecimento geral, observando os dados do Tesouro Nacional brasileiro notamos que em 2013 o estoque da dívida bruta da União alcançou R$ 2,9 trilhões [86,2% federal] e a conta juros foi de R$ 248 bilhões em termos nominais [87,5% federal].  Entre 2009 e 2013, já foram pagos do orçamento do país mais de R$ 1 trilhão em juros aos credores financeiros, como grandes bancos e fundos de investimentos, nacionais e estrangeiros.

Então, importa assinalar que diante de uma carga tributária de 36% do PIB, onde quem a sustenta são, na grande maioria, os trabalhadores de média e baixa renda, micro e pequenos empresários e algumas parcelas de profissionais liberais, o orçamento da União, sobretudo do governo federal, passou a ser executado, nas últimas duas décadas, compreendendo a correlação de forças, econômicas e políticas, que se apoderou, direta ou indiretamente, dos principais centros de decisão do país, tornando-se responsável pelo maior movimento de transferência de renda da nossa história e tendo como eixo central a dívida pública nacional. Por essa razão, qualquer desvio de conduta da política econômica contrariando esses grandes interesses é veementemente combatida pelos agentes e formadores de opinião, principalmente oriundos do mercado financeiro, como as agências de rating internacionais, economistas-chefe de instituições bancárias, a grande mídia etc.

Para exemplificar, entre 2012 e meados de 2013, o atual governo passou a reduzir a taxa Selic, que remunera os títulos da dívida pública, e a meta de superávit primário [saldo entre os gastos e despesas correntes para efeito de pagamento dos juros da dívida pública]. Entretanto, diante das condições adversas da produção agrícola que influenciavam nos índices inflacionários e das mudanças no cenário internacional, que pressionavam para elevação do câmbio, contaminando também os indicadores de preços, iniciou-se uma verdadeira campanha midiática de formação da opinião pública criticando, intensamente, a política econômica e apontando um "descontrole" inflacionário. Essa campanha alcançou êxito e, a partir de junho, o governo voltou a escalada altista dos juros básicos da economia e comprometeu-se, moderadamente, com metas mais altas de superávit primário.

Portanto, o que está em jogo nessas eleições de 2014?

A melhor proposta que se comprometa em continuar adotando uma política econômica responsável, que não aborreça os credores da dívida pública brasileira, seja parcimoniosa nas estratégias de combate à pobreza e miséria no país, criativa na solução de alguns dos principais problemas brasileiros, os quais foram alvos de reivindicação nas mobilizações de junho de 2013, e não seja irresponsável em perseguir taxas de crescimento econômico elevadas, baseadas na expansão do mercado interno com fortes estímulos à demanda agregada.

O crescimento econômico no modelo até então vigente é visto como uma ameaça à estabilidade econômica, principalmente quando a inflação ameaça afetar os ganhos rentistas dos grandes magnatas das finanças e credores do Estado. O argumento do esgotamento do modelo é uma justificativa para não correr os riscos de causar prejuízos ao sistema financeiro-bancário, principalmente. Pois caso a inflação, mesmo que moderada, ultrapasse os limites das metas estabelecidas, deve-se compensar as perdas financeiras com juros mais elevados, comprometendo ainda mais os setores produtivos e inviabilizando, politicamente, o pacto de poder instalado. Também, a proposta governamental não poderá reestabelecer ou alterar os termos da inserção internacional do país; é preciso manter a livre circulação de capitais, sua desoneração fiscal e o câmbio apreciado.

Enfim, em jogo nas eleições em 2014 qual a melhor proposta de gerenciar o Estado brasileiro em seu desiderato de continuar atuando como suporte central no processo de criação e acumulação de riqueza no contexto do capitalismo contemporâneo sob a batuta do movimento de financeirização.      

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