A Propriedade da Terra em Alagoas

02/05/2014 06:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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Em um “pequeno” clássico da historiografia latino-americana, A herança colonial da América Latina: ensaios de dependência econômica [Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977], Stanley J. Stein e Bárbara H. Stein analisaram a formação econômica, política e social da região, nos contextos de fortalecimento e decadência dos laços que ligavam as metrópoles europeias às suas colônias em nosso hemisfério.

Um dos méritos do livro foi demonstrar que mesmo com os movimentos de libertação e independência de várias colônias, por volta da transição do século XVIII para XIX, o processo colonial continuou sob novas bases, tendo a Inglaterra o julgo de influenciar as antigas metrópoles, no caso Portugal e Espanha, e determinar novas relações de dependência, principalmente econômica e política, envolvendo as ex-colônias ibéricas.

O que eles chamaram de neocolonialismo caracterizou-se pela entrada da Inglaterra no comando da economia mundial e a “anexação indireta” de vastos e ricos territórios às suas necessidades de expansão econômica, no bojo do desenvolvimento industrial, principalmente no alvorecer século XIX.

Por exemplo, a promulgação do Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, em 28 de janeiro de 1808, pelo então Príncipe-Regente de Portugal Dom João de Bragança [Dom João VI], atendeu basicamente a dois objetivos: 1] abrir os canais de comércio da colônia com a Inglaterra para que a coroa portuguesa e seu séquito, com aproximadamente dez mil pessoas, pudessem viver com “certa dignidade” nos trópicos; e, 2] atender as exigências dos ingleses de acesso às matérias-primas e insumos para sua nascente indústria; exigências cumpridas sem muita resistência de Portugal, já que seus mandatários foram muito favorecidos pela escolta, até o Brasil, realizada pela Marinha de Guerra Britânica, quando fugiam das invasões napoleônicas em toda península ibérica. E mais importante: quem naquele momento se disporia a contrariar os interesses internacionais ingleses além da poderosa França e alguns grupos piratas?

Mas, o livro de Stein & Stein direciona também nossos olhares à situação presente da estrutura agrária em Alagoas sob a ótica histórica. No final do quarto capítulo assinalam com propriedade: “[...] é importante frisar que os aspectos sociais da colonização não podem ser separados de sua matriz econômica, e o cerne dessa matriz era constituído pelo privilégio em termos de acesso à propriedade e ocupação, da propriedade das minas, das grandes fazendas, das estâncias de criação de gado, do comércio e da burocracia. Uma sociedade estratificada e hierarquizada significava que apenas um reduzido grupo, interligado por laços e casamento e parentesco, controlava a riqueza e a renda. O fracasso na diversificação da economia [...] indicava as limitações impostas às oportunidades econômicas. Às massas restava [...] o trabalho no campo ou o papel de proletariado urbano” [p. 92, negrito nosso].

Diante desse argumento não podemos desconsiderar, em hipótese alguma, que a formação histórica de Alagoas e sua atual configuração econômica e social, têm as marcas indeléveis, até os dias atuais, de nosso processo colonial. Isso é ainda mais marcante na estrutura agrária e propriedade das terras no estado.

No livro Economia Popular: uma via de modernização para Alagoas [Maceió: EDUFAL, 2012], de nosso amigo e professor da UFAL, Cícero Péricles de Oliveira Carvalho, consta, entre outras inúmeras e importantes análises, uma visão sumária da estrutura da propriedade de terras em Alagoas, com base no último Censo Agrícola produzido pelo IBGE, em 2006.

Alagoas possui 123.331 estabelecimentos fundiários. Cerca de 101 mil deles alcançam 10 hectares. Com até 1 hectare são 42 mil estabelecimentos. Ao todo, esses pequenos estabelecimentos representam 82% do total e ocupam 226 mil hectares no estado, ou seja, apenas 11% das terras agrícolas.

Por sua vez, as grandes propriedades, com mais de 1.000 hectares, somam 197 unidades, representando apenas 0,1% do total de estabelecimentos fundiários. Entretanto, esses quase 200 estabelecimentos ocupam sozinhos 556 mil hectares, representando 27% de todas as terras agricultáveis do estado e quase o triplo dos pequenos estabelecimentos até 10 hectares.

A grosso modo, esses dados indicam que tem muita gente em pouco espaço agrícola e muito espaço para pouca gente. Os dados trazidos por Péricles ainda informam que 34 mil unidades fundiárias com até 10 hectares [28% do total], que ocupam 9% da área total agrícola no estado, apresentam relações muito precárias de propriedade como assentados sem titulação definitiva, arrendatário, parceiro, ocupante, meeiro etc.

Mais de 80% da produção agrícola do estado é composta de cana-de-açúcar que ocupa boa parte das grandes propriedades fundiárias no estado. Outra parte desses estabelecimentos são destinadas, principalmente, à criação de gado, ovino, caprinos, pastagem e especulação fundiária.

Os pequenos estabelecimentos se responsabilizam pela produção de mandioca, feijão, coco da baía, banana, milho e outras poucas culturas. Nesse caso, a agricultura familiar assume um importante papel. Aproximadamente 90% dos estabelecimentos agrícolas alagoanos se compõem de agricultores familiares que contribuem com 28% da produção agrícola do estado.

Um importante estudo publicado pelo IPEA em abril de 2014, sob a coordenação e organização do professor Sérgio Shneider [UFRGS] e técnicos do IPEA, Brancolina Ferreira [DISOC/IPEA] e Fábio Alves [DISOC/IPEA], intitulado Aspectos Multidimensionais da Agricultura Brasileira: diferentes visões do Censo Agropecuário 2006, traz análises essenciais para a compreensão de nosso mundo rural contemporâneo [clique aqui].

Nesse estudo destacamos o capítulo Dimensão e Características do Público Potencial do Grupo B do PRONAF na Região Nordeste e no Estado de Minas Gerais, escrito por nosso amigo e professor Joacir Aquino [UERN], em parceria com outros estudiosos. De acordo com ele aproximadamente 50% dos agricultores familiares no Brasil têm renda média anual de R$ 1,5 mil, representando o grosso da pobreza rural do país, de acordo com o Censo Agrícola 2006. No Nordeste a renda média desses agricultores é de R$ 1.118 mil, sendo a maior registrada em Pernambuco [R$ 1.282] e a menor em Alagoas [R$ 955]

Com exceção das famílias assentadas em razão do Programa Federal de Reforma Agrária, boa parte dos agricultores com renda média anual abaixo de R$ 1,5 mil, não estavam incluídos no sistema de financiamento rural até 2000. A partir desse ano, essa parcela majoritária dos agricultores familiares foi incorporada ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar [PRONAF] e classificados como Grupo B.

O Nordeste brasileiro possui a maior parcela dos agricultores familiares do Grupo B do país. São 1,5 milhão de estabelecimentos representando 64,8% do total do país. Em Alagoas, o Grupo B abarca 70,4% do total das unidades de tipo familiar [78,6 mil], ocupando 46,3% da área total ocupada pelas famílias no estado [316 mil ha].

Os agricultores familiares enquadrados no Grupo B, aqueles que correspondem a parcela mais pobre da zona rural brasileira, ocupam uma área média de 9,6 hectares no Nordeste. Em Alagoas a área média ocupada é de apenas 4 hectares, o menor nível entre os estados nordestinos e da média mineira.

 

Com isso, podemos destacar que a concentração da propriedade da terra em Alagoas e o baixo rendimento da agricultura familiar contribuem, sensivelmente, para o quadro de pobreza e subdesenvolvimento de nossas estruturas econômicas. Esses problemas, logicamente, não são de hoje, tratam-se de heranças de nossa formação histórica colonial e o passado recente de expansão da monocultura da cana-de-açúcar, que tiveram em Alagoas sua mais nítida e cruel experiência.

Alguns de nossos principais problemas urbanos, como a violência, crescimento desordenado do espaço urbano e escassez de oportunidades econômicas, são fruto da intocada estrutura de propriedade rural. Tem razão o eminente geógrafo Manuel Correia de Andrade quando afirmou em seu clássico A Terra e o Homem do Nordeste [São Paulo: Editora Cortez, 2005], o seguinte: “Estas cidades hoje possuem problemas de estrutura interna de abastecimento, de segurança e de higiene, difíceis de ser corrigidos, e toda a política de desenvolvimento urbano que vem sendo aplicada não pode solucionar esses problemas, porque sua origem está no campo, que permanece intocado, e não nas cidades” [p. 245].

Em razão, portanto, do domínio da monocultura da cana-de-açúcar e a forte concentração de terras, esses problemas são mais acentuados no estado de Alagoas. Isso é bem representado pela sua elevada densidade demográfica de 112,33 habitantes, em média, por quilometro quadrado. Isso representa o triplo da região nordestina [34,5 hab./km2] e cinco vezes do país [22,43 hab./km2].

Evidente que qualquer proposta de desenvolvimento econômico e social para o estado deve levar em conta esse problema.Os principais são como elevar a área média dos agricultores familiares, incentivá-los a produzir com suporte técnico apropriado, facilidade de acesso ao financiamento rural e garantias de safra. A propósito, 72% de todo o pessoal ocupado na zona rural de Alagoas [mais de 300 mil pessoas] estão na agricultura familiar.

Entretanto, mudanças na estrutura da propriedade da terra em Alagoas, com assentamento de famílias, e maiores incentivos à produção agrícola, tanto para as unidades familiares como não-familiares são estratégias complexas e equivoca-se quem imagina que depende, exclusivamente, da competência do governo estadual. Ademais, essas mudanças levam tempo e muito esforço, exigindo-se, para isso, ambiente adequado e mobilização política que não são tão fáceis de serem alcançados no curto prazo.

Entretanto, apesar do grau de complexidade, alguns aspectos são possíveis. Por exemplo, mudanças na propriedade da terra em Alagoas através da reforma agrária é de competência do governo federal, promovido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária [INCRA]. Atualmente, transformações importantes no sistema agrícola alagoano estão acontecendo com a reestruturação e crise do setor sucroalcooleiro.

Por exemplo, boa parte das terras antes ocupadas pela plantação de cana-de-açúcar no lado norte da Zona da Mata está ficando ociosa em razão do fechamento de usinas e a impossibilidade de mecanização da colheita. Nesses espaços, se abrirão possibilidades importantes de realização de uma reestruturação, com apoio e incentivo do governo federal, da ocupação territorial e criação de culturas agrícolas que gerem mais emprego e renda para o homem do campo. Trata-se de uma importante fronteira agrícola no estado que está se descortinando.

Outra fronteira agrícola capaz de contribuir com o desenvolvimento econômico e social de Alagoas são os espaços que estão se abrindo à agricultura familiar e criação de animais ao longo do trajeto do Canal do Sertão. Caso os projetos para essas áreas forem bem elaborados, a ocupação territorial bem realizada e se privilegie os pequenos e médios produtores, podemos incrementar, fortemente, a atual e combalida agricultura alagoana.

Por fim, é razoável compreender que o mundo rural é bastante complexo e exige uma multiplicidade de ações para atender principalmente os produtores mais pobres. Os programas do Brasil sem Miséria e o microcrédito do PRONAF, são extremamente importantes, mas insuficientes para aumentar e resolver a pobreza na zona rural alagoana, elevar a produção da agricultura familiar e gerar mais riqueza.

Com isso queremos dizer que não basta apenas uma redistribuição territorial e ocupação mais racional dos fatores de produção. O desenvolvimento econômico e social no campo, em questão nas Alagoas, requer um esforço político e criativo muito maior do que uma simplista abordagem revolucionária da reforma agrária pode fornecer, apesar da importância de ampliação desse programa no país.

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