2014: vinte anos do Plano Real

14/03/2014 06:00 - Fábio Guedes
Por Fábio Guedes Gomes
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Nas salas de aulas das universidades e faculdades brasileiras os alunos e alunas têm idade média de 22 anos. Isso não é diferente nos cursos de economia. Um ou outro possui mais do que essa média. Acima de 30 anos é raridade. Então, o sujeito que já completou três décadas de existência estendia uma das mãos aos pais para atravessar a rua em direção à escola, por exemplo.

De acordo como último censo demográfico do IBGE [2010], o total da população brasileira atingiu pouco mais de 190 milhões de pessoas. Até os 30 anos são 100,8 milhões. Com trinta anos completos apenas 3,5 milhões. Isso significa que, atualmente, 53% do total da população do país não sabem ou conheceram na prática o que foi ou representou o Plano Real e seu desenrolar.

Apenas cerca de um terço da população vivenciou, verdadeiramente, a experiência do Plano Real. Fora desse universo um percentual muito pequeno dedicou algum tempo em sua vida a estudar, ler e interpretar artigos sobre o assunto. Com certeza a grande maioria das pessoas no país somente ouviu falar ou apenas conhece o Plano Real por causa da moeda que usa. Portanto, trata-se de mais uma página de nossa história recente.

Para início de conversa é importante lembrar que no início da década de 1990 a conjuntura econômica internacional estava muito favorável, com os capitais voltando a circular em maiores volumes pelos mercados, intensificando os fluxos buscando novos horizontes de rentabilidade e remuneração.

Bem diferente do contexto da década de 1980, quando encurralados por uma crise de liquidez internacional e uma dívida externa estratosférica, o Brasil tinha grandes dificuldades de realizar pagamentos ao exterior, com sucessivas desvalorizações da moeda nacional e, por consequência, processos inflacionários crônicos.

Com o chamado Plano Brady, proposto pelo governo dos EUA, em 1989, a dívida externa da maioria dos países da América Latina foi reestruturada. Em contrapartida, o Tesouro dos EUA, o FMI e Banco Mundial e os policy makers dessas instituições recomendaram [quando não impuseram mesmo] a adoção de uma agenda de reformas que ficou conhecida como Consenso de Washington.

A conhecida e combatida Área de Livre Comércio das Américas [ALCA], projeto estadunidense do final da década de 1980, completava a estratégia, buscando integrar, definitivamente, os mercados locais à economia da América do Norte, com prejuízos fundamentais às soberanias e autonomias nacionais. Felizmente foi sepultado o projeto por resistência sul-americana.

Depois da experiência mal sucedida do governo Collor de Melo em controlar a inflação e com uma taxa de crescimento de -1,3%, entre 1990/92, seu governo chegou ao fim depois de concluído o processo de impeachment, em 1992. Itamar Franco foi conduzido, então, ao posto de condottiere do país nesse ano. Por outro lado, o Plano Collor reduziu em mais de 70% nossa dívida pública devido às fortes medidas de repressão fiscal e absorção dos ativos financeiros privados.

Entre dezembro de 1992 e maio de 1993, Itamar Franco nomeou três ministros da Fazenda, Gustavo Krause, “O breve”, [dezembro], Paulo Haddad [janeiro/março] e Eliseu Resende [março/maio]. Já na gestão do Paulo Haddad, foi preparada uma carta de intenções com diretrizes gerais da política econômica vindoura, descartando qualquer possibilidade de choques ou surpresas que desnorteassem as expectativas dos agentes econômicos. As dificuldades ainda eram imensas e a reestruturação da dívida externa brasileira ainda não tinha sido concluída.

No final de maio de 1993, Fernando Henrique Cardoso [FHC] assume o ministério da Fazenda em lugar de Eliseu Resende, que não conseguiu reverter a crescente deterioração das expectativas privadas em relação ao Programa de Estabilização Econômica, lançado em 21/04/1993, e o agravamento da situação inflacionária. O mercado aguardava medidas mais ousadas e reformas mais amplas.

Ao assumir a pasta, o novo ministro se cercou de uma equipe técnica coesa no início, mas que ao longo do tempo de execução do Plano Real foi aumentando as divergências internas. O tema do câmbio se tornou o elemento das discórdias.

Essa equipe foi recrutada junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-RIO] e faziam parte dela Edmar Bacha, Pérsio Arida, André Lara Resende, Winston Fritsh e Gustavo Franco. Ela foi responsável pela realização de um diagnóstico sobre a situação da economia brasileira e pela elaboração do Plano Real. Pedro Malan, que viria a ser o ministro da Fazenda, se integraria à equipe em setembro, já como presidente do Banco Central.

O diagnóstico sobre a inflação brasileira reconhecia seu movimento inercial [a inflação passada determina a inflação no presente], em razão dos elementos indexadores da economia, criados entre 1960 e 1970, como corretivos monetários dos preços relativos.

A elaboração do Plano Real baseou-se na proposta de André Lara Resende e Pérsio Arida [Proposta Larida], apresentada em 1984, que indicava ser necessária a simultaneidade da existência de duas moedas; uma contaminada pela inflação e a outra protegida e valorizada, com um processo gradual de substituição até o momento em que os agentes econômicos reestabelecessem a confiança na nova moeda. Era preciso, então, recuperar suas três funções básicas: unidade de conta, intermediário de troca e reserva de valor.

Assim, é correto colocar que o Plano Real foi resultado de um longo processo de experiências mal sucedidas, por várias razões, mas principalmente por não contarem com um ambiente internacional mais propício. A filosofia do plano não se restringia apenas à estabilização econômica, mas contava com uma ampla abertura comercial e financeira e um programa de privatizações de estatais objetivando um ajuste fiscal com redução, bastante profunda, das funções do Estado na sociedade.

Após anunciar o Programa de Estabilização, em dezembro de 1993, e cumprir as etapas preestabelecidas, como i) o ajuste fiscal [criação do Plano de Ação Integrada, objetivando a reorganização do setor público], ii) a reconstrução da moeda [adoção da Unidade Real de Valor] e iii) o lançamento da nova moeda [Real], Fernando Henrique Cardoso foi lançado à Presidência da República. Em 30 de junho de 1994, através da Medida Provisória n° 434, DOU, assinada pelo presidente Itamar Franco [diga-se de passagem] o Plano foi oficialmente anunciado pelo então ministro da Fazenda Rubens Ricupero, que sucedeu FHC já em campanha presidencial.

Para estabilizar os preços, reestabelecer o poder de compra da moeda nacional, conceber a abertura comercial e financeira, impor um “choque de concorrência” e financiar as importações, os formuladores do Plano não adotaram, exclusivamente, uma meta quantitativa de moeda em circulação, priorizaram a administração da taxa de juros e adoção de um sistema de bandas cambiais pré-fixadas.

A estabilização monetária foi alcançada muito rapidamente. Com taxas de juros elevadas, importações crescentes e redução dos gastos estatais, a demanda agregada recuou fortemente e, pelo lado da oferta interna, as empresas restringiram, extraordinariamente, suas atividades, com redução de custos e cortes de postos de trabalho.

Apesar do Plano Real se tornar o mais bem sucedido programa de estabilização adotado no país, o crescimento econômico não foi alcançado. Podemos dizer que ele teve dois períodos distintos, mas inter-relacionados.

O primeiro foi entre 1994 a 1998, quando a inflação foi controlada à custa do forte endividamento público do Estado brasileiro e do aumento da vulnerabilidade externa do país [forte dependência de capitais estrangeiros]. O segundo momento se estende de 1999 a 2002, quando a economia brasileira passou apresentar taxas muito baixas de crescimento do PIB, elevada fragilidade e restrição fiscal.

Esses ingredientes provocados pela insistente necessidade de ser manter as taxas de juros elevadas, o câmbio valorizado e a dependência de poupança externa – como principal fonte de financiamento da economia brasileira -, levaram o país, entre 1998-1999, a uma de suas piores crises cambiais já registradas na segunda metade do século XX - foi tão terrível que arrastou nossa vizinha Argentina para sua maior crise econômica depois da grande depressão de 1929, quando os mercados internacionais fecharam as portas aos seus produtos e os britânicos bloquearam créditos e saldos de exportações nos bancos da city londrina.

Para se ter uma noção, entre 1995-2000, o passivo externo brasileiro [soma de todas as dívidas no exterior e os recursos de estrangeiros aqui aplicados ou comprometidos] tinha alcançado US$ 450 bilhões. A crise asiática de 1997 pegou o país de frente em razão das armadilhas montadas pelo Plano Real que aumentaram nossa vulnerabilidade externa. Em 1999 nossa necessidade de financiamento das contas externas chegaram a US$ 73 bilhões, contra US$ 12,3 bilhões de 1994.

A grave crise cambial brasileira [desvalorização profunda de nossa moeda e dificuldades de honrar compromissos financeiros com o exterior] forçou o condottiere do país, FHC, assumir um acordo com o FMI, sob o endosso do Tesouro dos EUA, subordinando nossa política econômica em troca de um empréstimo de contingência de aproximadamente US$ 50 bilhões para salvar nossas contas externas. 

A avaliação da economia brasileira feita pelas agências de rating internacionais foi rebaixada e adotou-se, em troca da ajuda internacional, uma nova agenda de reformas e administração política do país. Daí que se estabeleceram o sistema de metas de inflação, de câmbio flutuante e de superávits primários nas contas do governo federal. Além disso, estabeleceu-se o controle dos entes subnacionais, através da Lei de Responsabilidade Fiscal [Lei Complementar n° 101, de 04/05/2000], que somente veio a reforçar a centralização do poder federativo na instância executiva e que tinha dado um passo importante com a Renegociação das Dívidas Públicas Estaduais [Lei 9496/1997].

Em razão das primeiras revisões do acordo com o FMI, um memorando de Política Econômica de março de 1999, já insinuava reformas no sistema financeiro público e nos relatórios de empresas de consultoria, sugeria-se a privatização de instituições federais, como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal [1]. 

Como coloquei logo acima, a questão do câmbio valorizado, foi um dos elementos de discórdia entre os membros da equipe técnica do Plano. Em estimulante livro sobre o Plano Real, Maria Clara Prado [ex-assessora do Ministro da Fazenda, Pedro Malan] aponta que Pérsio Arida, então Presidente do BNDES, ainda na primeira fase de execução do Plano, se dirigiu ao então diretor do Banco Central e seu futuro presidente, Gustavo Franco, e disse: “Você está maluco, esse processo de valorização tem que parar” [2]. Ademais, registra-se que o bate-cabeça na equipe econômica era intenso na segunda fase, quando o quadro econômico tinha piorado sensivelmente.

Resistente, “o menino do câmbio”, como ficou conhecido Gustavo Franco, levou até as últimas consequências sua religiosa fé na necessidade de uma moeda muito forte, com endosso do Ministro da Fazenda, Pedro Malan, e do próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, que muitas vezes sequer era consultado em várias decisões macroeconômicas importantes.

Por outro, outros tucanos de plumagem também esbelta eram favoráveis a um ajustamento e desvalorização cambial, como Antônio Kandir [ministro do Planejamento], Bresser Pereira [ministro da Administração], José Roberto Mendonça de Barros [secretário de Política Econômica], Luiz Carlos Mendonça de Barros [presidente do BNDES] e o próprio José Serra [Ministro da Saúde] [3].

Há quem aponte outras hipóteses para a apreciação durante tanto tempo da moeda brasileira. Em instigante livro, o jornalista Luís Nassif [4] disseca os bastidores do poder no período FHC e aponta os interesses cruzados entre membros da equipe econômica e instituições do sistema financeiro que se beneficiavam da arbitragem cambial no país. Um desses membros, inclusive, tinha atuado como um eficiente e flagrante inside information, chegando a montar um banco [com o sugestivo nome de Matrix] para praticar corretagem cambial, hábito que se tornou bastante comum entre bancos de investimentos no país [5].

Entretanto, a vaidade política e o objetivo da reeleição de FHC, como também o pensamento da ortodoxia econômica incrustrada dentro do Ministério da Fazenda e Banco Central, impediram ajustes nos eixos centrais no Plano Real, até 1998, e nos conduziram à crise cambial de 1999. A elevada fragilidade fiscal, a vulnerabilidade externa crônica e o baixo crescimento econômico do país já eram sinais claros de que a política de estabilização econômica tinha chegado ao seu limite com altos custos para o país.

Em resumo, nossa chamada “estabilidade dos preços” custou muito alto à nação. Como podemos observar no quadro abaixo, fragilizou fortemente outros elementos da macroeconomia brasileira, provocou um estado de desemprego grave e agravou a situação fiscal do Estado e seus entes subnacionais.

No tocante aos índices inflacionários, foi evidente a diminuição, mas pode-se notar que o controle dos preços foi bastante errático. No período 1999-2002, por exemplo, a média foi bastante elevada, ficando a inflação bem acima das taxas registradas mais recentemente. A taxa média de crescimento real do PIB foi muito baixa, apenas 2,3% entre 1995 e 2002, contra 4% entre 2003 e 2010, por exemplo. Em termos percapita o crescimento real foi de 0,79% contra 2,86%, respectivamente.

Enfim, que as novas gerações tomem o gosto pela história para olharem com mais atenção nossa trajetória civilizatória. Reconhecer os erros e avanços. Saber distinguir criticamente sua situação presente compará-la com a de seus pais e avós. Melhorar a capacidade de escolha política e o fazer política. Depois de 2002 ingressamos em outro período controverso de nossa outra história econômica, com estreitos laços com o que acabamos de resenhar.

Resumo da ópera em algumas séries de números selecionadas.

 

DICA: sugerimos a leitura da excelente e recente entrevista do Prof. Wilson Cano, decano do Instituto de Economia da UNICAMP, sobre nosso endividamento e os planos econômicos recentes [clique aqui].

 

[1] TAVARES, Maria da Conceição. Desnacionalização e vulnerabilidade externa. Folha de São Paulo, 03 de dezembro de 2000.

[2] PRADO, Maria Clara R. M. A real história do real. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

[3] OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. Política econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.

[4] NASSIF, Luis. Os cabeças-de-planilha: como o pensamento econômico da era FHC repetiu os equívocos de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, 2007

[5] Conferir a esclarecedora entrevista concedida por Luis Nassif ao jornalista Paulo Henrique Amorim clicando aqui

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