Advogado criminalista comenta sobre questões do mensalão

25/11/2013 20:49 - Paulo Chancey
Por Paulo Chancey Viana
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Conforme anunciamos, e inaugurando a versão em formato blog, do programa Conversa Afiada, com Paulo Chancey, hoje trazemos uma entrevista com o advogado criminalista Leonardo de Moraes, com quem conversei sobre temas de direito e processo penal, em especial sobre alguns aspectos em torno da Ação Penal 470, popularmente conhecida como “mensalão”.

Segue a entrevista:

Blog: Depois do rumoroso julgamento e condenação dos envolvidos na Ação Penal 470, mais conhecida como Mensalão, a expressão que mais se ouviu foi a dos chamados embargos infringentes, que acabou por conceder o direito de novo julgamento a alguns deles, entretanto, isso causou um certo furor na população que entendeu tratar-se de algum tipo de manobra político-jurídica para beneficiar aos envolvidos.  Gostaria que o Sr. Explicasse o que é esse instrumento jurídico, em que situação deve ou pode ser aplicado e porque, no caso dos envolvidos no escândalo do “mensalão”  houve tantos embates no STF quanto à aceitação ou não.

LM - O art. 333, I e seu parágrafo único, do Regimento interno do Supremo Tribunal Federal, veicula o recurso chamado de embargos infringentes, cuja hipótese, dentre  outras é para o caso de procedência da ação penal (condenação do réu), desde que  pelo menos 4 votos sejam divergentes, sendo exatamente o que se deu no caso  em tela. Mas a discussão sobre o seu cabimento é estritamente jurídica, não tendo qualquer relação com impunidade. Com efeito, o art. 22, I, da Constituição Federal versa que apenas o Legislativo da União pode tratar de matéria processual, como é o caso do cabimento de recurso. E os embargos são previstos por meio de Regimento  Interno, instrumento normativo criado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, e não pelo Legislativo da União. As discussões acaloradas ocorreram justamente em função disso.

Blog: O regime de prisão é outro assunto que causa certo desconforto na população, que não entende a diferença entre regime fechado, semi-aberto e aberto, nem o fato de, no caso do regime semi-aberto, grande parte dos condenados acaba em liberdade ou cumprindo penas alternativas ou mesmo prisão domiciliar. O sr. pode explicar para os leitores do blog sobre isso?

LM - Os regimes de cumprimento de pena são regulados pelo Código Penal e,principalmente, pela Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84). Os regimes variam, basicamente, conforme o tamanho da pena aplicada. Partindo do pressuposto de que os crimes apontados aos réus eram punidos com reclusão, os regimes iniciais de cumprimento de pena serão executados da seguinte forma: a) Fechado, quando a pena aplicada é superior a 8 anos, cujo cumprimento realizado em penitenciária;  b) Semi-aberto, quando a pena aplicada fica entre 4 e 8 anos, cujo cumprimento se dá em colônia agrícola, industrial ou em estabelecimento similar; e c) Aberto, na medida em que pena não ultrapassa 4 anos, sendo executada em casa de albergado ou estabelecimento adequado. A legislação é rígida quanto ao modo de execução da pena, sendo obrigação do Estado a tomada de todas as providências. Por isso, caso o Estado seja omisso, não providenciando, para os condenados ao regime semi-aberto, a construção de colônias agrícolas, industriais, etc, deverá o condenado cumprir a pena em regime aberto, ou em prisão domiciliar.

Blog: Porque o STF não aceitou o requerimento do advogado e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para que o processo da AP-470 fosse desmembrado para que alguns dos acusados pudessem responder na justiça comum? Essa recusa pelo STF não caracterizaria cerceamento de defesa, já que, sendo uma instância superior os réus não teriam direito a recurso?

LM - primeiramente algumas autoridades, tendo em vista a relevância do cargo que ocupam (e não em razão da pessoa!!!), tem direito a julgamento perante órgão colegiado. É o que se chama de foro por prerrogativa de função, não havendo qualquer relação com privilégio. A maioria dos acusados detinham esta função, e por isso foram julgados pelo STF, cuja vantagem é o simples fato de não depender do julgamento de apenas um juiz, mas de um órgão colegiado, minimizando a possibilidade do erro judicial. A questão foi negada pela mais alta Corte do país, tendo em vista a oportunidade de manifestação que todos os réus tiveram (o chamado contraditório), de sorte que o desmembramento seria desnecessário. A minha posição particular é a de que seria necessário o desmembramento, por uma questão bem simples: 35 dos acusados não tinham função pública relevante, de sorte que não detinham foro por prerrogativa de função.

Blog: O que o Sr. Acha da discussão sobre a perda dos mandatos de alguns dos condenados? A perda deve ser automática em função da condenação ou apenas o legislativo tem o poder de fazer isso?

LM - A problemática existe em razão de 2 dispositivos da Constituição Federal aparentemente contraditórios. O primeiro é o art. 15, inciso III, que determina que os condenados definitivamente perderão seus direitos políticos e, por consequência, o mandato. O Segundo é art. 55, VI, que aduz que, em caso de condenação criminal definitiva, a perda do mandato caberá ao Congresso (Câmara ou Senado). Na verdade, não há qualquer possibilidade de se considerar que um Parlamentar condenado e preso continue detentor do mandato eletivo, por total impossibilidade de poder desempenhar a sua função. Foi o que entendeu o Pretório Excelso. A questão salta aos olhos.

Blog: O publicitário Marcos Valério recebeu uma condenação acima de 40 anos, resultado da dosimetria aplicada pela soma de todos os crimes nos quais foi enquadrado, mas, considerando os prazos que permitem a progressão da pena e, consequentemente e mudança de regime, quantos efetivamente ele deverá ficar preso em regime fechado, quando poderá usufruir do semi-aberto e aberto?

LM - A contagem do tempo para a progressão do regime (passagem do mais rigoroso para o menos rigoroso) se dá sobre a pena efetivamente aplicada, e não sobre o limite de tempo de cumprimento de pena de prisão (30 anos). Assim, como não houve a prática de crime hediondo, o cálculo será de 1/6 sobre os 40 anos, 4 meses e 6 dias de condenação, resultando em aproximadamente 6 anos e 6 meses de execução da pena em regime fechado. Depois passará para o semi-aberto.

Blog: Saindo um pouco da AP-470, mas ainda falando em prisão, uma das coisas que mais tem dado trabalho aos advogados criminalistas tem sido a decretação de prisão temporária de suspeitos de crimes contra a vida ou mesmo de desvios de recursos, e, via de regra, os defensores dão declarações à imprensa que as prisões são arbitrárias, desnecessárias, etc. Quando é que efetivamente faz-se necessária a prisão temporária? O Sr. Acha que está havendo abuso por parte dos magistrados na decretação?

LM – A prisão temporária é regulada pela Lei 7.960/89, e o seu fundamento é que a segregação seja indispensável às investigações policiais. Ou seja, a liberdade do suspeito vai trazer obstáculo concreto às diligências. Se nos autos não houver absolutamente qualquer concreto (e não presumido) de que a liberdade obstruirá o trabalho da Polícia, a prisão não poderá ser decretada. Não acredito em abuso, mas de que é obrigação do Juiz controlar a legalidade da medida cautelar, o que não tem sido feito com certa regularidade. A função do Magistrado é respeitar os direitos fundamentais, dentre eles o respeito às regras do jogo (devido processo legal). O que os advogados cobram é apenas o respeito à legalidade.

Blog: Fala-se muito em ressocialização, direitos humanos, dignidade da pessoa humana, e isso tudo é muito bonito e impressionante, na teoria, mas na prática o que se vê são verdadeiras aberrações, com um sistema penitenciário falido, completamente ultrapassado, um quadro desanimador, sobretudo quando o próprio ministro da Justiça declarou que preferia morrer a ter que ficar preso nesse sistema que tem uma população carcerária de mais de maio milhão de presos onde só caberiam pouco mais de 300 mil, o que significa um défict de mais de 200 mil vagas. Em sua opinião como podemos ressocializar pessoas submetidas a tantos constrangimentos e humilhações, confinadas em verdadeiros calabouços fétidos, onde a dignidade mistura-se aos próprios excrementos humanos? O que Sr. Acha disso?

LM - A ressocialização através da pena é um engodo e uma utopia. Num processo criminal não está se julgando o homem e a sua personalidade, mas apenas o fato que foi por ele praticado. Não se julga alguém pelo que é, mas pelo o que fez. Além disso, o sistema carcerário é absolutamente falido e inoperante, de forma que ele, na verdade, dissocializa, ou seja, faz com que o condenado saia pior do que entrou, transformando os presídios em verdadeiras Universidades do crime. O tratamento desumano, a tortura, a dificuldade para ter a visita dos seus parentes, a falta de trabalho, instalações adequadas e dignas, são determinantes nesse processo de degradação, apresentando à sociedade um novo homem: ao invés de um simples ladrão, um mega assaltante. Na história, a pena só serviu para um fim: o castigo. E será sempre assim. Os Governos jamais investiram na construção de estabelecimentos adequados. Sou completamente realista e pessimista neste sentido

Blog: Para finalizar nossa Conversa Afiada, o Sr. Acha que o episódio que culminou com as prisões de medalhões da política nacional é sinal de que estamos caminhando para uma nova realidade na justiça brasileira, no que diz respeito tão combatida impunidade ou o mensalão é apenas um caso isolado e que muito ainda há de ser feito para alcançarmos esse patamar?

LM - É um novo passo no combate a criminalidade, apenas pelo efeito que passa: a sensação de que a pena pode ser aplicada a todos. Mas ao mesmo tempo não é capaz de resolver nada, pois o crime permanecerá forte e crescerá, já que estamos diante de um Estado completamente omisso e que não cumpre os seus fins democráticos. O que minimiza as infrações penais (e não evita) é, resumidamente, a educação, a ocupação e o trabalho, tendo o Estado o dever de providenciar as condições mínimas de convivência social. A geração atual já esteja perdida, fruto da ineficiência do passado. Mas as futuras ainda podem ser salvas se os citados elementos mínimos e outros forem implementados. A única solução para o combate ao crime que ouço é o fortalecimento da Polícia e o maior número de prisões, sem a preocupação com os jovens que estão se desenvolvendo. O futuro ainda será pior, enquanto não houver mudança de mentalidade e de foco. Prisão não resolve nada e o Estado só pensa nisso.

 

O Blog agradece ao advogado criminalista Leonardo de Moraes pela entrevista. Na próxima segunda-feira, traremos mais uma edição especial do blog, no Conversa Afiada, com Paulo Chancey.

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