Gestores públicos equivocados apropriam-se de pagamentos de fornecedores

01/10/2013 20:05 - Paulo Chancey
Por Paulo Chanccey
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Não jeito mesmo. Quanto mais o tempo passa, mais a gente percebe o quanto a administração pública está refém de gestores e servidores públicos presunçosos que, sob o argumento pífio do zêlo pela coisa pública, acabam cometendo atos arbitrários como o de apropriar-se indevidamente de valores destinados ao pagamento fornecedores ou prestadores de serviços, alegando que estes estariam em situação de irregularidade perante os órgãos fiscais.

Essa postura me motivou a escrever um artigo sobre o tema, intitulado "A exigência de regularidade fiscal como condição de pagamento", e que trazemos agora sua reedição para o refresco da memóriadesses gestores e servidores, muitos dos quais indignos até mesmo de irem para o inferno.

Este artigo de minha autoria também foi publicado na Revista L & C de Direito Administrativo, da editora Consulex, e também auxiliou na fundamentação de decisão judicial no judiciário do Estado do Paraná.

Segue o texto:

Muitos órgãos do poder público, prefeituras e seus agentes têm adotado um equivocado posicionamento quando se deparam com solicitações de pagamento por bens fornecidos ou serviços prestados por terceiros, e convencionaram, em alguns casos, muito provavelmente estribados em seus próprios entendimentos, por excesso de zelo ou por mero apego a formalidades inúteis, que um dos procedimentos que entendem como indispensável para a consolidação do pagamento é que esse fornecedor ou prestador de serviço apresente, junto à nota fiscal e recibo, as certidões que comprovem que estão em situação de regularidade fiscal, e o fazem, equivocadamente, em nome da lei, talvez até mesmo baseados nos termos de decisões e acórdãos do TCU (a exemplo do questionável Acórdão 704/2004), que andam na contramão e que “pacificam” entendimentos que não se coadunam com os posicionamentos doutrinários, nem com a jurisprudência predominantes sobre o tema, exatamente porque dão aos dispositivos legais – que reproduzimos e comentamos abaixo – uma interpretação ampliada, inventiva e que provocam reações diversas da parte prejudicada, e com razão.

Tal procedimento, diga-se logo, de passagem, é IRREGULAR e, portanto, ILEGAL, e tem criado uma série de embaraços no cotidiano da Administração perante seus fornecedores, posto que, uma vez utilizado o bem o usufruído dos serviços, não se cogita a hipótese da Administração deixar de dar a sua contrapartida que é, exatamente, o pagamento, e justamente por conta disso, tem ensejado inúmeras demandas judiciais e jurídicas, que têm, por fim, julgamentos no sentido condenar a sua manutenção.

 

Se é assim, vejamos em primeiro plano onde estão agasalhados os dispositivos que versam sobre o assunto:

 

O que diz o dispositivo constitucional:

 

Art. 195

 

§ 3º. – A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o poder público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

 

O que diz a lei geral de licitações (8.666/93):

 

Art. 29

A documentação relativa à regularidade fiscal, conforme o caso consistirá em:

 

IV – prova de regularidade relativa a Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei (Redação dada pela lei 8.883, de 08/06/94).

 

Art. 55

XIII – a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução o contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação.

 

Art. 87

(os termos deste artigo tratam da aplicação das sanções administrativas para os casos de inadimplemento contratual, ou seja, caso contratante ou contratado deixe de cumprir total ou parcialmente alguma das condições contratuais pactuadas entre si. Entre as sanções estão a advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração e a declaração de inidoneidade).

(os destaques são nossos).

 

Conforme podemos ver, os textos dos dispositivos legais acima guardam uma perfeita simetria entre si, especialmente quando, de forma inquestionável, caminham na mesma direção, que é a de nortear os procedimentos que devem ser adotados ainda quando não existe um contratado, ou seja, é na fase preparatória para o contrato que é a LICITAÇÃO, mais precisamente na fase de habilitação, que a condição de regularidade fiscal do futuro contratado dever ser investigada.

 

O texto constitucional discorre, em tom de advertência: “a pessoa jurídica em débito com seguridade social... não poderá contratar com o poder público...”. Óbvio nos parece, que se não poderá contratar, menos ainda poderá licitar.

 

O texto da lei geral de licitações (8.666/93), em seu art. 29 apenas apresenta o rol de documentos possíveis de serem exigidos do candidato ao contrato, na fase de habilitação da licitação, que comprove estar ele em situação regular no que se refere ao quesito fiscal, perante a seguridade social (INSS), Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), Receita Federal e fazendas estadual e Municipal, além da Dívida Ativa da União.

 

Por sua vez, o art. 55, também da lei geral de licitações contribui para o acirramento da discussão em torno do tema, posto que estabelece a obrigatoriedade do futuro contratado, para manter a regularidade fiscal durante toda a execução do contrato, e, talvez esteja ai,  o motivo pelo qual, alguns órgãos e prefeituras, de forma equivocada, estejam, retendo ou bloqueando pagamentos por bens já fornecidos ou por serviços já prestados.

 

A controvérsia que envolve o art. 55 se esgota na revelação de que, em sendo uma cláusula de obrigação inserida no instrumento contratual, se em dado momento da execução do contrato, quando o prestador ou fornecedor estiver solicitando o pagamento, não comprovar a sua regularidade fiscal, estaríamos diante de uma quebra de cláusula contratual, para a qual as hipóteses de sanção administrativa somente poderiam ser aquelas taxativamente relacionadas no art. 87 da lei de licitações, que, nem de longe, contempla a possibilidade de retenção ou bloqueio de pagamento, considerando-se que este rol de hipóteses punitivas, sendo taxativo, não permite ao gestor público, seja qual for o seu cargo, função ou patente, uma interpretação mais “ampliada” de forma a permitir a continuidade da prática desse ato que, ainda que de boa-fé, apresenta-se de todo condenável do ponto de vista legal.

 

O que diz a doutrina:

Ao analisar os dispositivos legais, o que conclui o doutrinador?

 

“Não significa que a Administração esteja autorizada a reter pagamentos ou opor-se ao cumprimento de seus deveres contratuais sob a alegação de que o particular encontra-se em dívida com a Fazenda Nacional ou outras instituições. A Administração poderá comunicar ao órgão competente a existência de Crédito em favor do particular para serem adotadas as providências adequadas. A retenção de pagamentos, pura e simplesmente, caracterizará ato abusivo, passível de ataque através de mandado de segurança.” (Marçal Justen Filho – Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos – São Paulo, Editora Dialética, 2002, p. 549).

 

Dessume-se, a partir da leitura do texto doutrinário acima, que não pode a Administração abusar do que lhe convém chamar de “zelo”, “resguardo” ou qualquer coisa que o valha, para mascarar atos arbitrários como o que se cogita aqui. E nesse ponto, se pretende ela ser, de alguma forma eficiente, basta que o faça exercendo a prerrogativa que está legalmente ao seu alcance, a exemplo do dispositivo que passamos a transcrever:

 

Art. 55 da Lei 8.666/93

 

§ 3º. No ato da liquidação da despesa, os serviços de contabilidade comunicarão, aos órgãos incumbidos da arrecadação e fiscalização de tributos da União, Estado ou Município, as características e os valores pagos, segundo o disposto no art. 63 da Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964.

 

O ato referido no texto legal acima pode ser providenciado, no caso da quebra contratual (não manutenção da regularidade fiscal), ainda que não haja aplicação de possíveis sanções administrativas previstas no artigo 87, ou de rescisão contratual (art. 78, I e II da Lei 8.666/93).

 

Quanto à jurisprudência:

 

STJ – SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: RECURSO ESPECIAL ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE QUENTINHAS. SERVIÇOS PRESTADOS AO DISTRITO FEDERAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO PELA NÃO-COMPROVAÇÃO DA REGULARIDADE FISCAL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E LEGALIDADE.

 

Não se afigura legítima a retenção do pagamento do serviço prestado, após a efetivação do contrato e a prestação dos serviços contratados, pelo fato de a empresa contratada não comprovar sua regularidade fiscal.

...

Recebida a prestação executada pelo contratado, não pode a Administração se locupletar indevidamente, e, ao argumento da não-comprovação da quitação dos débitos perante a Fazenda Pública, reter os valores devidos por serviços já prestados, o que configura violação ao princípio da moralidade administrativa. Precedentes.

Recurso Especial improvido

(STJ, REsp 730800/DF, Ministro FRANCIULLI NETTO, DJ 21.03.2006 p. 115)

 

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL A 1ª. REGIÃO

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. SUSPENSÃO DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE PERANTE O SICAF E/OU APRESENTAÇÃO DE CERTIDÕES NEGATIVAS E BALANÇO ATUALIZADO COMO CONDIÇÃO PARA O PAGAMENTO DOS SERVIÇOS PRESTADOS. PRECEDENTES DA CORTE.

 

É incabível condicionar o pagamento por um serviço já prestado à comprovação da regularidade fiscal da agravada, sob pena de enriquecimento ilícito.

Agravo de instrumento improvido

(Quinta Turma – Relatora Desa. Federal  Selene Maria de Almeida, DJ 21.02.04)

 

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª. REGIÃO:

EMENTA: COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL COMO CONDIÇÃO DE PAGAMENTO AO CONTRATADO. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO SEM CAUSA POR PARTE DO PODER PÚBLICO.

 

Uma vez firmado o contrato, e tendo o impetrante cumprido a prestação contratual, não pode a administração esquivar-se, sob nenhuma justificativa, de efetuar a remuneração correspondente, haja vista que, se assim o fizer, estará praticando enriquecimento ilícito;

 

O contrato administrativo deve ser executado fielmente, exercendo cada parte seus direitos e cumprindo suas obrigações;

 

Se o impetrante foi habilitado para a realização dos serviços, é porque demonstrou possuir os requisitos mínimos  de capacidade jurídica, capacidade técnica, idoneidade  econômico-financeira e regularidade fiscal exigidos pela administração.

Remessa oficial improvida (TRF 5ª. Região, Remessa Ex Officio 63346-CE, Relator Juiz Federal Geraldo Apoliano, 19.11.1998).

 

Diz o ditado que “para um bom entendedor, poucas palavras bastam”. No caso do presente texto, não fizemos uso de poucas palavras, até porque isto não seria possível, dada a peculiaridade e complexidade, além do conteúdo doutrinário e jurisprudencial dos quais se reveste o tema em comento. Mas se pudermos “trocar em miúdos”, como se diz no jargão popular quando devemos explicar alguma coisa de forma resumida, então podemos dizer para os gestores públicos o seguinte: parem de exigir certidões negativas de regularidade fiscal ou outra qualquer, como condição para efetuarem os pagamentos... parem de presumir precauções irreais... Não produzam provas contra si mesmos.

 

A situação ainda é mais grave quando a prática condenável de que falamos aqui não está restrita aos pagamentos dos contratados remanescentes de procedimentos licitatórios. Pasmem vocês, isto está acontecendo até mesmo para pagamentos de valores abaixo do limite da dispensa de licitação previstos  nos incisos I e II, do art. 24, da lei geral de licitações (até R$ 8.000,00 para compras e serviços comuns e até R$ 15.000,00 para obras e serviços de engenharia), para os quais exclui a necessidade de procedimentos com maiores formalidades, conforme se pode observar da exclusão desses incisos do rol das hipóteses de dispensa de licitação citadas no art. 26, onde aponta que a partir do inciso III e seguintes das hipóteses de dispensa é que devem ser observadas as formalidades processuais e, para os quais, portanto,  não há que se falar em justificativa de preço, razão da escolha do fornecedor, e cotejamento de preço, muito menos, se admite negar-lhes pagamento em função da eventual ausência de comprovação de regularidade fiscal.

 

Agindo da forma como estão, além de estarem incorrendo em crime de enriquecimento ilícito, de atentarem contra os princípios da moralidade, da legalidade e da probidade administrativa, também estão impondo aos fornecedores sérios danos financeiros e morais, posto que ao terem seus pagamentos retidos ou bloqueados, estes deixam de cumprir obrigações com outrem, têm títulos protestados, cheques devolvidos, etc. Tudo isso, passível de demandas judiciais e, é claro, de responsabilização administrativa e civil de quem lhes dá causa. Nesses casos, os agentes públicos, os gestores de contratos, os responsáveis pelos pagamentos e os próprios prefeitos, das duas, uma: ou o tiro que estão dando vai ser no próprio pé, ou vai sair pela culatra. Abram o olho!

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