O último romance de George Orwell, 1984, publicado nos idos de 1949, portanto pouco tempo após o final da segunda guerra, desempenhou o papel de se alinhar ao pensamento dos intelectuais de direita e promover um massacre às idéias socialistas, na época em ascensão. Era a guerra fria que se iniciava. O embate havia começado. Deixava as trincheiras do solo europeu e passava para uma disputa de mentes e corações. Os até então aliados se separavam para disputar o poder sobre a humanidade. E nesse momento, com uma humanidade cansada de guerra, a disputa se daria no campo ideológico.
O horror da guerra e a bravura dos partisans emprestavam um colorido muito forte aos que militavam na esquerda. O momento era muito favorável às novas idéias. A devastação da europa exigia de seus filhos um comportamento coletivo, de solidariedade. Era hora de erguer as nações devastadas. Os interesses individuais tinham um espaço muito pequeno diante dos apelos coletivos por saúde, educaçao, infraestrutura e etc.
Por outro lado, a guerra estava muito ligada às ganâncias das potências e os fascistas tinham contado com a simpatia de uma parte das elites dos países ocupados. A direita se encontrava em desvantagem e a esquerda avançava. As idéias socialistas encontravam amparo na maioria esmagadora dos intelectuais. Para completar o quadro, nos países da periferia do capitalismo o sentimento de patriotismo e de autodeterminação dos povos estava em alta e reforçava ainda mais o pensamento de esquerda. As nações não suportavam mais o peso do colonialismo vivido antes da guerra.
Embora os Estados Unidos saíssem fortalecidos, a coroa britânica diminuía de tamanho. O chamado bloco comunista cresceu. O alcance político da então União Soviética tinha se expandido e incluía o leste europeu, a metade da Alemanha e a China, por exemplo. O resultado do pós guerra foi um redesenho do mundo. Portanto, a segunda guerra não foi só uma derrota para o fascismo. Representou também uma ameaça para o capitalismo. As fronteiras das nações ditas socialistas se expandiram de modo ameaçador aos interesses do pensamento divergente. A guerra ideológica começava o seu período mais intenso.
Era nesse contexto que esquerda e direita se enfrentavam, e onde se inseria o "1984". Nós, que militavamos na esquerda, tínhamos como adversário esse libelo. Odiávamos reconhecer, mas 1984 era um livro bem escrito, gostoso de ler, e portanto fazia bem o seu papel. Nele, Orwell emprestava a sua pena para bater sem dó nas supostas idéias socialistas. Caricaturava como podia. Falava de uma sociedade autoritária onde qualquer vestígio de direitos individuais seria banido em nome do suposto bem comum. Todos eram vigiados e qualquer desvio individualista deveria ser punido. Para isso, o Grande Irmao, personagem que encarnava o ser supremo, a quem todos deviam obediencia e em nome dele agiam, vigiava através de uma rede de espionagem e de tecnologia onde ninguém escapava aos olhos e ouvidos do poder central. Em nome da defesa dos interesses coletivos - definidos, claro, pelo Grande Irmão -, todo o tipo de invasão de privacidade era permitido.
O tempo passou, a URSS ruiu, o muro de Berlim caiu e os regimes existentes no leste europeu se desintegraram. Como se não bastasse, e como golpe de misericórdia, a China virou a locomotiva do capitalismo. Houve até um anúncio do fim da história. Era a vitória consagradora da liberdade individual e da privacidade contra as ideias utópicas de uma sociedade sufocante. Tudo nos fazia acreditar que o Grande Irmao havia sido destruido. George Orwell tinha vencido. O Grande Irmão estava morto e sepultado.
O mundo mudou e a idade me fez esquecer de "1984", o livro. Um belo dia aparece nos noticiários um tal de Edward Snowden com uma grande novidade para mim: o Grande Irmão está mais vivo do que nunca. Para meu espanto, o Grande Irmão é o Tio Sam. Quem bisbilhota a vida de todo mundo e quer ter o controle de tudo e de todos é exatamente quem discursa em defesa dos direitos do homem e do cidadão. Exatamente quem, da boca para fora, pede ao mundo que respeite os direitos individuais e faz belos discursos sobre a inviolabilidade da pessoa.
É o Tio Sam quem abre emails, olha Facebook, futuca Twitter, entra sem pedir licença em nossos computadores e nos meios de comunicaçao. E o argumento é exatamente aquele ridicularizado por Orwell: em defesa da nação mãe, do poder central, vale a pena esmagar o direito de cada um. Sem pedir licença. Sem combinar regras. Sem permitir que a comunidade internacional defina o que é de interesse de todos e o que é abuso de poder. Tripudia do velho conceito de soberania e esquece qualquer princípio basilar de democracia e de convivência internacional.
Nos mesmos noticiários fiquei sabendo que o Tio Sam não estava querendo apenas conhecer a nossa batucada. Era tudo lorota. Inocência de quem mora abaixo da linha do Equador, aonde não existe pecado. O Tio Sam armou acampamento no planalto central e com sua parafernália eletrônica observa o que a América Latina faz e deixa de fazer. Controla, do nosso quintal, as empresas, os governos e as informações privilegiadas transformadas em códigos binários que trafegam pela internet. Uma flagrante invasão da soberania nacional. E mais, uma vez descobertas as suas peripécias em terras de macunaíma, o Tio Sam faz cara de paisagem, como se nada estivesse acontecendo. Pelo contrário, acha estranho tanta ingenuidade do governo brasileiro.
Esse estranhamento tem sua justificativa. Desde setembro de 2001, sob o discurso de combate ao terrorismo e com uma economia sem o vigor do passado, os EUA têm emitido avisos ao mundo sobre sua nova forma de atuar. Avançam vorazmente sobre áreas estratégicas. Aumentam a presença militar e a superioridade tecnológica em regiões do planeta que atendam melhor a sua geopolítica. E agora, se descobre, usam sem medida a condição de país sede das grandes empresas de comunicação. Todos os dados das redes sociais passam pelos Estados Unidos. Há um ditado que diz que quem tem informação tem poder. O mundo precisa se garantir. Essa assimetria de informações é um atentado à democracia, à soberania dos países e aos direitos humanos. Algum órgão internacional deve discutir as novas regras de segurança entre as nações em face dos avanços da tecnologia da informação e da assimetria que eles provocam.
Episódio recente mostrou o tamanho da intervenção americana. A força é tanta que o Tio Sam perdeu a noçao da discriçao. Até a Europa, berço das idéias iluministas, terra de Voltaire, Rousseau, Diderot e Montesquieu, pátria da liberdade, igualdade e fraternidade, se dobrou aos Estados Unidos de uma maneira vergonhosa ao impedir o transito do Presidente Evo Morales de volta para casa. O Presidente da Bolívia passou por constrangimentos, é certo, mas O Tio Sam humilhou os países europeus e mostrou para o mundo quem é que manda na Europa. França, Itália, Espanha e Portugal se viram na situação constrangedora de atender aos caprichos do dono do mundo. Se os dois François se encontrassem, se Mitterrand pudesse dizer alguma coisa a Hollande, seria algo do tipo: "não se faz mais estadistas como antigamente".
Eu perdi para os que concordavam com George Orwell, e me conformo com isso, mas fiquei com o gostinho de dizer para eles que o Grande Irmao não era quem eles pensavam.