O jornalista Celio Gomes, editor-geral da jornal Gazeta de Alagoas faz um mapeamento do apartheid na meio pátria de Zumbi. Texto magistral.
Faixa de Gaza na Ponta Verde
Nos fins de semana, a Faixa de Gaza se agita de modo especial. Se o domingo é de sol, então está tudo mais que perfeito para circular nos domínios demarcados. As tribos parecem distintas, mas são iguais. A Faixa de Gaza fica na Ponta Verde, na capital de Alagoas, geograficamente perto do resto da cidade, mas sem contato real aparente com o outro lado. Entre um polo e outro da Faixa maceioense, à beira-mar, ficam os dois marcos que inspiraram o nome do território. São duas barracas de praia.
A coisa ficou tão importante que virou até música, com um clip produzido em altos padrões técnicos. Coisa de publicitário que nasceu para ser artista. O clip foi alvo de cobertura da imprensa e está no Youtube. Para exaltar o que realmente interessa em Alagoas, nasceu a canção Maceió Meu Bem Querer. Vídeo e música resumem a essência do pensamento que predomina entre os militantes daquele universo à parte.
Entre as muitas extravagâncias que cercam essa novidade, a primeira que chama atenção é justamente o fato de batizarem esse cenário com um nome associado a conflitos e guerras. Ao contrário da Faixa de Gaza original, aqui palestinos e israelenses se alternam entre um polo e outro, a depender das promessas que o dia insinua. Não existe confronto de rivais no pedaço da orla marítima eleito como suprassumo da boa vida. Entre uma exclamação e outra, a única briga possível é de vaidades.
Outro aspecto tão ou mais exótico é o palavrório dos artistas responsáveis por esse projeto. Em entrevista para explicar a ideia, um dos compositores disse que a música e o clip estão aí para mostrar Maceió de forma positiva; a preocupação por trás da obra é exaltar o que é bom – e deixar de lado as coisas negativas da cidade. De fato, o clip faz uma faxina na imagem da capital. Não tem favela, não tem fome nem violência; não há morador de rua sendo assassinado nem meninos pobres nos sinais de trânsito. O que importa é “lopanear”, diz a letra cantada por um de seus mentores.
Na verdade, tudo surgiu de uma intenção de marketing. A criação dos artistas é fruto de um contrato com uma das barracas, interessada em valorizar a Faixa ainda mais. Espantoso como algo puramente publicitário forja um discurso de autenticidade. Tão falso quanto a comparação com a real Faixa de Gaza é a tentativa de definir o que é importante para ver e conhecer em Maceió. Sem maiores dramas, a vida é aquilo ali: sol e mar, drinque original, cardápio de chef exclusivo, a galera descolada e a curtição. O resto não existe.
Do Salvador Lyra ao Vergel, de Fernão Velho ao Jacintinho, de Bebedouro ao Sobral – há muitas ruas, becos, botecos e gente. Pessoas fazendo de tudo, inclusive arte, sem a maquiagem da idiotice bronzeada. Não se trata de defender oposição entre essas realidades – isso quem faz é a mentalidade por trás de Maceió Meu Bem Querer. O clip abusa de imagens com as figuras da nossa Faixa de GazMas a cidade não tem dono, não pertence nem aos mandatários de plantão nem aos que se querem no direito de impor fronteiras sociais, como parece ser o caso aqui. A cidade é imprevisível, incoerente, indecifrável. É feia e bonita, suja e caótica, vibrante e triste. A publicidade em questão – no fundo é só isso – não faz homenagem a Maceió, como afirmam os autores desse troço. A homenagem é para uma turma e sua particular visão de mundo. Do começo ao fim, uma coleção de equívocos embalados numa musiquinha entediante, afogada em clichês e tolices.
Vendo em perspectiva, digamos que essa foi a moda desse verão em Maceió – para quem necessita estar na moda a cada estação. Igual a outras frivolidades que brotam como capim, em breve o modismo de hoje deve ceder lugar a qualquer coisa que pareça novo – mesmo que o novo seja velho, reacionário e boçal.
É evidente, no entanto, que ninguém precisa disso. Posso pisar o chão da Ponta Verde na hora que bem entender, sem dar satisfação ao figurino-padrão da paisagem. Mas hoje prefiro a Serraria e o Conjunto Joaquim Leão – territórios inexistentes no clip da rapaziada que só respira o ar da chamada área nobre. A Faixa de Gaza praieira, em Maceió, retratada por seus nativos mais engajados, é um mundo paralelo, oco e barulhento.
Fonte: Blog do Célio Gomes- Gazeta de Alagoasdomingo, 17 de fevereiro de 2013 - às 11h43