Ellen Oléria jovem, negra, pobre, gorda e lésbica. A voz que cura.

25/12/2012 12:19 - Raízes da África
Por Arisia Barros

O racismo no Brasil aparta e exclui. Nelson Maca escreve, esplendidamente, sobre a musicalidade e a voz de Ellen Oléria, vencedora do The Voice Brasil, da rede Globo e os conceitos sutis da exclusão.

Nelson Maca*

Voz que cura. Carlinhos Brown, emocionado, assim definiu Ellen Oléria na final do programa The Voice Brasil. Deixou de lado suas performances e foi de uma sinceridade absoluta. Realmente, a voz e a musicalidade de Ellen, jovem, negra, pobre, gorda e lésbica, por alguns dias despertaram, emocionaram, uniram e curaram nossa brasilidade tão desumana.
Para a maioria dos expectadores, nascia uma estrela. Mas fica uma dúvida ante sua presença avassaladora: onde estava essa moça de 30 anos de idade e 13 de carreira? Essa pergunta move meu texto, pois, há seis anos, eu sei onde e com quem anda essa linda menina mulher da pele preta. Por isso inverto e desdobro a questão: onde estava essa infinidade de fãs novos e por que ela não era ouvida antes? Por que essa voz estava exilada? O que dá vazão ao seu canto agora?
Apesar de jovem, foi árdua sua luta contra o imperialismo musical. Só na capital da Bahia preta, Ellen já esteve cinco vezes nos últimos cinco anos. Algumas em atividades do coletivo Blackitude Vozes Negras da Bahia. Sempre circulando na base e sem despertar grandes paixões na grande mídia. No Sankofa African Bar, espaço de resistência, fez três apresentações, duas no Sarau Bem Black. Com o bloco afro Okánbi, sob a regência do grande mestre Jorjão Bafafé, cantou nos dois últimos carnavais.
Dias depois da explosão, já é anunciada para o Festival de Verão. Aproveito, não apenas para questionar o desmedido poder da televisão, mas também perguntar aos produtores e gestores de cultura, pensadores da comunicação e ao imenso público baiano do The Voice: de que lado vocês sambarão quando se apagarem as luzes?
Ellen é metonímia de um conjunto de artistas condenados à invisibilidade, a mercê do esperado dia da revelação que dificilmente virá. Embora haja reality shows pela vida, não vivemos num jogo do milhão. Porém, sua chegada apoteótica à grande família, sem camuflar suas tensões sócio-racias, levanta a moral de pessoas negras, periféricas, homossexuais...
Seu talento sem excessos é igualmente agregador. Brown interpretou sua contenção como generosidade para com os outros competidores. Assim se revelou uma pessoa equilibrada, crítica, de bom humor e artisticamente competente. Escolheu a direção do baiano por afinidade que fez questão de explicitar. Estreou e fechou seu trajeto com Jorge Benjor. A canção Zumbi, cartão de visitas, foi um nítido posicionamento racial. Disse a que veio! Ideologia e performance em harmonia que faz lembrar o feliz título do bom livro da poeta paulista Dinha: "De passagem, mas não a passeio".
Ellen é fruto de vivência no gospel da tradição batista, no samba e no rap nacional. De sua adesão à música popular brasileira suingada. Tudo embalado pelo seu domínio instrumental de percussionista e violonista autodidata, gestual de atriz e versatilidade na composição. O Brasil conheceu o amálgama de uma artista com história, porém, até então calada pelas amarras de tantas exclusões. Por razão ou descuido, soltaram uma pantera negra selvagem no jardim de domesticados bichanos.
Ellen é um elogio ao talento da mulher centrada. Somente o preconceito tiraria sua vitória, mas foi ela quem o tirou de letra e música. Quero saudá-la pelo requinte artístico e pelo golpe desferido no preconceito popular brasileiro. Ela não se ocultou, portou sua identidade como um manto sagrado. Não nasceu uma estrela, que já era, apenas desabitou as vielas, para compor avenidas. Agora fez-se referência musical com nossa cara: do mesmo porte e encanto que Clementina de Jesus, Ivone Lara, Elza Soares, Virgínia Rodrigues e Jovelina, todas Pérolas Negras.

Fonte: http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/nelson-maca-ellen-oleria-e-perola-negra/#.UNnr0Uri28s.facebook- Nelson Maca é poeta, articulador do Blackitude, professor da Ucsal e membro do Conselho Estadual de Cultura
   

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