A Bahia dá ao Brasil muitas coisas, inclusive as contradições que precisamos cruzar para entender o racismo e a discriminação religiosa.

22/06/2012 07:00 - Raízes da África
Por Arísia Barros

Um belíssimo e riquíssimo texto da Jornalista, Doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Rio de Janeiro, Stela Guedes Caputo que também é autora do livro: ‘Educação nos terreiros”, onde questiona o ensino religioso nas escolas e grande parceira do Projeto Raízes de Áfricas, em Alagoas.


Vamos chamar o vento
Stela Guedes Caputo


Mais uma vez uma TV brasileira exibe “Gabriela, Cravo e Canela”, novela baseada no romance de um dos mais populares escritores brasileiros, o baiano Jorge Amado. A mesma Bahia que abrigou os estrangeiros, quase baianos Verger e Carybe. Os três artistas, cada um a seu modo, emprestaram ao mundo o conhecimento, o amor e o respeito pelo Candomblé. Embora não se possa precisar a data, pesquisadores aproximam o ano de 1895 para a fundação do Ilé Axé Iyá Nassô Oká, o terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, como o primeiro candomblé fundado no Brasil, justamente, na Bahia. Eu lanço os olhos mais para trás porque o ano de 1533 é o registro mais antigo de envio de escravos para o Brasil. O nosso candomblé nasceu na diáspora. No sal do mar e das lágrimas de quem foi arrancado de suas terras para erguer nas plantações de cana, tabaco e café, uma economia alheia. Nos navios negreiros vieram o trabalho escravizado e os Nkices, os Voduns e Orixás. A classe dominante do Brasil colonial queria só o trabalho e mal podia imaginar que, diferente do cristianismo que conhecia e praticava, o corpo, no candomblé é a morada do sagrado. Os Orixás e Nkices vierem nos corpos, atravessaram o Atlântico e se espalharam no Brasil pelas portas da Bahia.
A importância da Bahia para o Candomblé é histórica. Da cisão dessa primeira casa, nasceram outras também gigantescas em força: o Gantois e o Axé Opó Afonjá. Até a década de 1960, o Candomblé no Brasil era, em termos quantitativos, quase restrito à Bahia, basicamente a Salvador e ao Recôncavo Baiano. Atualmente, só na capital, a Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros tem registro de 2.230 terreiros. Além disso, ainda hoje, Salvador é a cidade com o maior percentual de negros fora da África. Por isso, quando ouvimos falar em discriminação do Candomblé na Bahia é difícil entender o paradoxo. É o caso de uma ONG, em Pirajá, que está tendo dificuldades para iniciar seu curso preparatório para o Instituto Federal da Bahia (IFBA) porque os interessados se matriculam, mas desistem quando descobrem que as aulas irão acontecer em um terreiro de Candomblé.
Ocorre que se a Bahia é mãe de Jorge Amado, também é mãe de Raimundo Nina Rodrigues, médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1888, seguidor do criminologista italiano Cesare Lombroso.
Rodrigues media cérebros de negros e brancos na Bahia e concluiu que os negros e mestiços tinham uma tendência natural para o crime, o alcoolismo e toda espécie de degeneração, incluindo aí suas religiões. Análises que serviram de base para intensificar a perseguição que os adeptos do culto tanto sofreram na Bahia e em outras regiões do país. Pedro Gordilho, que perseguiu, de verdade, vorazmente o candomblé, virou Pedrito Gordo em Tenda dos Milagres de Jorge Amado, que captou tão bem a complexidade sobre a qual falamos aqui.
A Bahia dá ao Brasil muitas coisas, inclusive as contradições que precisamos cruzar para entender o racismo e a discriminação religiosa que ele engendra. Além da literatura, os também baianos Bethânia, Gil e Caetano ergueram vozes em amor e em defesa dos Orixás. E quem não conhece os versos de Vevé Calazans: “A força que mora na água, não faz distinção de cor e toda a cidade é de Oxum.”? Mas, embaixo da beleza que vemos e ouvimos há, na Bahia e no Brasil, as teses da inferioridade dos negros. Elas surgem também quando pessoas se recusam a fazer um curso porque este acontece em terreiros, e em outros tantos exemplos de discriminação e crimes contra as casas de axé. Uma boa maneira de enfrentar as contradições é evidenciando-as, em oposição ao mito de que vivemos em uma democracia racial. A discussão precisa correr. Para isso, cantemos com Dorival Caymmi, outro baiano tão necessário: “vamos chamar o vento, vamos chamar o vento!”
 

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