Um texto para ler e se emocionar. Um tributo a Abdias Nascimento.
O Radical Carinhoso e sua Raiva Santa.
Três baleiros de rua me cercavam curiosos, com seus parcos panos cobrindo suas pele pretas de seus corpos mirrados. Circulavam em meio àquela pequena multidão de mulheres e homens negros na Cinelândia. Os olhos vivos da menina e dos dois meninos não me pediam trocados. Eram apenas olhares de crianças curiosas ao verem ao mesmo tempo, tantas pretas e pretos juntos e com roupas tão bonitas
A Kombi da funerária chegou em frente das escadarias da Câmara de Vereadores do município do Rio de Janeiro. Trazia o corpo matéria de Abdias Nascimento.
Velhos ativistas do movimento negro brasileiro, escolhidos por antiguidade, preparavam-se para levarem o caixão escada acima em revezamento, para ser velado no saguão da casa dos representantes do povo, da cidade que Abdias ainda jovem, escolhera para ser o palco de seu combate contra o racismo no Brasil.
Não haviam multidões de negros como no paço da princesa Isabel nem na república dos donos de escravos. Não estavam presentes nem as fanfarras oficiais nem guardas de segurança, como seria de praxe para um senador da República. Lá estava apenas aquele monte de negros e negros paramentadas e os três Erês curiosos.
É um morto, vão enterrar ali dentro? Me perguntaram. Quem é o morto? Repetiram. Era um homem que defendia os negros, respondi olhando para nossas peles mal cobertas pelos farrapos.
Meu paletó, minha calças, minhas cuecas, minhas meias, camisa e sapatos, não escondiam a minha nudez naquela praça. Éramos todos Pretos Novos, recém-chegados da África, guardando aquele corpo guerreiro, na praça mais famosa de nossa república.
Podemos ficar aqui, podemos ir lá dentro? Me perguntaram. Meu olhar aquiescente não foi necessário, ninguém precisava autorizá-los, eles sabiam que eram convidados de honra do mestre Abdias. Seus olhares tinham aquela certeza de crianças de rua de nosso Brasil, a certeza de que são donos do pouco tempo que tem nesta vida.
Chegaram autoridades, deputados, vereadores, artistas, jornalistas, até o ex-presidente Lula acompanhado pelo governador do estado. Chegaram judeus, muçulmanos e cristãos, todos para reverenciarem aquele homem defensor da religião dos Orişas, que foi o homem de dois séculos para a maioria do povo brasileiro. Maioria que ganhou algumas liberdades, mas não sabem a quem agradecer confundidos pelos reis, rainhas príncipes e princesas de plantão, que lhes distribuem pão-dormido.
Foram momentos contritos naquele saguão solene, a menina e os dois meninos estavam paramentados com as roupas de nossa dignidade e suas caixinhas de drops.
A paz do rosto do companheiro Abdias Nascimento, refletia a certeza que em nossa terra estava plantada a raiva santa. Os Erês o protegiam em sua caminhada para o Orum. Sua voz seguirá em uma criança negra que escape ao silvo da bala de aço do racismo à brasileira.