O menino dormia estirado na calçada nua da avenida movimentada. Era manhã com o sol pegando fogo, inflamando a quentura da epiderme dos passantes.
O porteiro do prédio aparece e com atitude truculenta sacode o menino pela camisa esfarrapada gritando irritado: “Acorda trambolho, seu negrinho de merda!” Vamos, levanta! Desinfeta a calçada!
O mundo da infância do menino já estrangulado pela enorme pobreza plantada ao seu redor desperta com a explosão de sentimentos forasteiros.
O menino não é dado a choros e invade as terras frias do ressentimento.
Olha no olho do porteiro do prédio, um homem de pele preta como ele, levanta-se em um silêncio contrito, enterrando na alma angústias envoltas numa espécie de desejo de vingança.
Vingar-se de quem?
Incomodado com a dignidade do pequeno menino, o porteiro ainda vomita: Vai trabalhar negro vagabundo!
O porteiro via o menino como uma quinquilharia barata. O menino via o porteiro como um crítico provocativo de sua dor de não ser ninguém.
A pureza da infância do menino fustigada pela miséria explosiva que expulsava os sonhos da inocência não vertia lágrimas.
Alimentava revoltas.
Porque o mundo repelia o menino?
O menino tinha raiva do mundo, de todo mundo por condenar sua família a escravidão de dias iguais: sem comida, sem casa, sem nada. O menino e sua família moravam ao sabor do sol e dormiam com o mapa das estrelas sobre suas cabeças.
Mas, não existia poesia.
A raiva do menino crescia quando via a mãe tirar comida apodrecida do lixão, depois lavar com água suja e pôr no fogo para todos eles comerem. E eles comiam, não tinham opção. Ou isso ou morrer de fome.
Não, a fome não mataria o menino. O espírito do menino recusava-se a morrer, mesmo com a infância forçada ao exílio no território da violência humana.
O pai deixara a mãe sozinha com os filhos.
O menino faz parte de uma grande população de múltiplos meninos e meninas reféns, vitimizados pela história formal da não existência: Sem registro. Sem Escola. Sem família. Sem cidadania.
Vivem no limbo e o estado os ignora.
Depois de atravessar as zonas perigosas do descaso social, a relação se inverte: o menino chega ao casebre favelizado, determinado a transgredir todos os estigmas que a vida lhe impinge e assevera a mãe: Um dia eu serei gente!
Ainda não é?!