Sem cerimônia chega a menina. É pequena e esperta tem uns nove anos.
O sorriso é descampado, dentes cariados enfeitam a ingenuidade de não sabê-los. Tem os cabelos lisos e a pele da democracia racial no Brasil. É morena!
A menina com a desenvoltura da recém-saída infância chega mais perto e pergunta-me arvorando a mão em meus cabelos crespos: Isso é cabelo de verdade?
Tento estabelecer contato e, em movimento contínuo, pego no cabelo da garota afirmando: sim é de verdade, assim como o seu.
Retruca: Não, o meu é bonito. O seu cabelo é feio! Parece mais uma peruca!
O mundo da infância da menina pobre que as políticas públicas de saúde e educação ainda não alcançam transvestiu em discurso a ideologia da separação racista.
Abecedário social: Se preto é feio, cabelo de preto também o é!
Por que cabelo não pode ser simplesmente cabelo?
Somos uma dupla inseparável eu, mulher assumidamente negra e meu cabelo.
Meus cabelos têm muitos fios que enraízam uma história de resistência e me dá identidade plena.
Somos eu e ele cúmplices de uma história de vida construída.
E, me volto para a garota inquirindo sobre a escola. Responde de pronto: estudo na X (escola estadual), no bairro tal. O bairro tal localiza-se entre a trilha da pobreza e exclusão: os "melhorzinhos para direita. O resto para o buraco do nada. É a fartura dos miseráveis. Falta água encanada, escola, posto de saúde, comida na mesa, trabalho para o pai da menina que bebe cachaça-todo-dia.
Pedagogia escolar? É a merenda de leite com chocolate e biscoito doce.
Ousando esticar a conversa indago se em sua escola não tem meninas com o cabelo igual o meu. A resposta chega enviesada pelo discurso ideológico da separação: tem um monte, mas nenhuma delas “é” minha amiga.
E fala com o conhecimento vocacional do apartheid internalizado nos espaços sociais da segunda nação mais negra do planeta.
A menina reflete o olhar social que mutila a positividade da representação negra na geografia dos espaços contemporâneos. O olhar para o cabelo negro é limitante,fragiliza auto-estima.
Segundo estudios@s parte da carga de preconceitos introjectados na infância é alimentada na escola.
Como se dá a sistematização da Lei Federal nº 10.639/03 nos planos de ação das escolas alagoanas?
Se bem administrada a Lei nº 10.639/03 seria instrumento estratégico para que valores estigmatizantes como os que carrega a menina de cabelos lisos, pudessem ser administrados numa pedagogia mais ampla do que ensinar a ler letras e escrever palavras.
A Lei Federal nº 10.639/ 03 antes de chegar a puberdade foi tirada a ferro e fórceps dos espaços estratégicos das escolas alagoanas.
Cometeram o crime de infanticídio com a Lei Estadual n° 6.814/07. Foi posta em túneis de esquecimento.
Entretanto, acreditamos que como o processo nocivo dos quase quatro séculos da escravidão brasileira o elaborado "esquecimento institucional" sofrerá os salutares e esperados estágios de mudanças de lugares. É assim que funciona a democracia.
Ao não criar espaços estratégicos e propícios para desconstruir os estereótipos racistas as escolas alagoanas alimentam a obesidade mórbida do ideal racista que começa na infância.