A convite do ministro da Igualdade Racial, Elói Ferreira, estivemos em Brasília no 20 de julho, para participar da solenidade da Sanção do Estatuto da Igualdade Racial, pelo presidente Lula. O texto é uma reflexão a partir da escuta de um diálogo entre duas personagens presentes na solenidade.
20 de julho, 15h30 da tarde. A menina olha com deslumbre- o olho púbere na busca de novos conhecimentos- o Salão Brasília do Palácio do Itamaraty. Deveria ter entre 12 e 14 anos, uma tiara de tecido prendia-lhe os fartos cabelos. Vestia um universal ‘jeans e trazia consigo a herança das palavras. A mãe professora colecionava manuais de redação e instruções táticas de como fazer um bom uso dos vocábulos.
A pequena observava e pensava nas rotas seculares das levas humanas de homens e mulheres escravizados trazidos a contragosto para o país. Noites imensas ficara com a mãe repassando a história de seus antepassados. Em outros e muitos momentos autonegara a negritude da pele. Não é confortável, em um país veladamente racista ter a pele como reprodutora de fragmentos de memórias amontoadas no tempo das idéias escravocratas. Foram mais outros e mais quilômetros de conversa com a mãe. A mãe era, para a menina, um manancial inesgotável de identidade e resistência. A menina amava a mãe com todos os superlativos. A mãe fora presa um dia quando no auge do desespero da fome roubara um pacote de leite para dar o alimento à pequena. Passara um ano inteiro enclausurada por conta da política racista e das miudezas da sociedade contemporânea, e mesmo assim a mãe da menina transformara a condição adversa da exclusão em uma vontade legítima de não se render a opressão da colonização social.
Presa as abstrações do mundo que circunda o Salão Brasília do Palácio do Itamaraty, a menina redesenha limites e se concentra em garimpar oportunidades. O princípio das possibilidades relembra a cartilha da mãe professora que em textos corridos repleto de linguagem verbal e não-verbal investe e investiga as realidades possíveis.
A menina apesar da pouca idade já vivencia pequenas e diárias tragédias que resistem aos arremedos das explicações simplistas e maculam o belo da infância. Fatos miúdos, brincadeiras de crianças- dirão alguns- mas, para a menina que veste a pele cotidiana do ser adolescente negra no Brasil, não é fácil.
Dia antes a professora da escola regular chamara a menina para uma conversa e explicara que não deveria participar do concurso: “A mais Bela do Colégio” para evitar futuros constrangimentos.
Diante da professora branca, a menina negra com fartos cabelos experimenta o mal-estar da segregação explicita. O véu fora deposto a pequena lembra-se das explicações da
mãe e da sua resistência a ser subjugada pelo simbolismo estético do racismo à la Brasil. A mãe dissera várias vezes que os espaços de poder são milimetricamente delimitados na sociedade brasileira.
Mesmo experimentando um forte sentimento de frustração, a menina negra equilibra a certeza em palavras e desafiando o sublimar do velho e encardido discurso socialmente eurocêntrico faz-se candidata a não ser mais uma personagem marginalizada. Igual entre iguais.
“Hoje nós estamos um pouco mais negros; um pouco mais brancos; e um pouco mais em paz” diz o Presidente da República do Brasil em seu discurso do 20 de julho, dia da Sanção do Estatuto da Igualdade Racial no Salão Brasília do Palácio do Itamaraty, e a menina ouve o discurso do presidente conjectura sobre realidades possíveis. A menina pensa no primeiro passo que a mãe deu, três décadas antes, quando saiu da prisão e as lembranças vão se misturando aos acontecimentos presentes. Luta e resistência eis o relevo geográfico da história da mãe, mulher negra como muitas no Brasil, como importante registro de uma era da resistência da mulher negra. Mulheres que cotidianamente reinventam linguagens para prosseguir no processo de afirmação étnico-social.
Mulheres como Tereza de Benguela, líder quilombola do século 18, que resistiu por mais de 20 anos à escravidão à frente do Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso.
Tereza de Benguela tem um dia, o 25 de julho é Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, segundo o Projeto de Lei do Senado (PLS) 23/09, de autoria da senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), que foi aprovado em decisão terminativa, pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE).
É isso o 20 e o 25 de julho- pensa a garota surgem como novas formas de exercitar os caminhos que nos levam a construção da liberdade.
Um primeiro passo...