O racismo é uma situação limite. Negros, ainda, são hóspedes incômodos, no segundo país mais negro do mundo, fora do continente africano.
O segregacionismo social dá fôlego ao negacionismo do povo negro.
Na época Márcia tinha 10 anos, menina esperta estudava em escola da rede estadual. Um dia Márcia não foi a escola, nem no outro dia e mais dias registraram a ausência da menina. Quinze dias foi o tempo que a mãe de Márcia,excessivamente constrangida, foi à escola avisar que a filha estava no pronto-socorro e provavelmente não voltaria à escola. Márcia tomara água sanitária. Por quê? A menina encontrara um caminho para clarear a pele.
Um dia a tia falara sobre o poema "Essa Nega Fulô", de Jorge de Lima: “Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê meu lenço de rendas, Cadê meu cinto, meu broche, Cadê o meu terço de ouro que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou! Ah! foi você que roubou!”
A turma repleta de meninas e meninos de pele um pouquinho mais clara que a da menina, despertada pela história-memória da subordinação escravocrata do poema instintivamente apontou para Márcia e lançou o chicote feito palavras: Ah! foi você que roubou!
Qual é o negro que, ao escutar estas palavras, não percebe a memória consolidando a história do escravagismo, exclusão, da inferioridade étnica?
Como questionar a ordem escravocrata se no convívio social os conhecimentos das muitas literaturas são disseminados e aprendidos como interpretação única?
E a turma rindo e devastando, estuprando e maculando a alma de Márcia: A Márcia é a Nega Fulô! Nega Fulô é ladrona! E a gargalhada ecoou como açoite.
A escola é um dos ambientes em que as relações humanas são racializadas. São situações rotineiras, concretas e contextualizadas que definem a auto-negação do povo negro.
A tia energicamente pediu a turma para encerrar com a “brincadeira” e se omitiu e se esquivou de promover uma releitura a partir do poema como forma de revisar a experiência social de um povo transformado em uma massa de expatriados em terras da colônia brasileira . Se a tia conhecesse a Lei Federal nº 10.639/03 ou a Lei Estadual/AL nº 6.814/07 saberia quais são os mecanismos a serem utilizados como proposta pedagógica para positivar a diversidade étnica brasileira.
Segundo Savianni: “No Brasil, o tipo de racismo que se desenvolveu fez surgir uma situação bastante complexa e difícil de ser desconstruída. Diferentemente do que houve nos EUA e na África do Sul – países em que se desenvolveu um sistema de organização social explicitamente baseado na raça –, a miscigenação foi usada para escamotear o racismo e criar o mito da democracia racial brasileira. Esse mito é contrariado sistematicamente pela violência explicitada nas formas mais sutis das relações cotidianas (brincadeiras, piadas e apelidos de cunho racista, o conceito de beleza branca como universal, as formas de olhar a pessoa negra) e nas mais escancaradas práticas racistas (violência policial, tratamento desigual do aparelho de segurança do Estado, baseado na cor da pele).”
O preconceito racial muda a vida das pessoas de várias maneiras. Os estereótipos da escola interceptam a auto-estima de crianças e jovens em formação, esmagam a construção individual do ser pessoa. Não é fácil conviver com relações humanas tensas e conflituosas originadas pelo apartheid e por angústias hameletianas: ser ou não ser? Eis a questão.
As escolas brasileiras precisam promover o exercício da revisão histórica. E para tal apresentamos Oliveira Silveira com o poema Outra Nega Fulô. Um exemplo da reversão dos valores. Um poema que dá voz a mulher negra, não mais escravizada. Mulher altiva e consciente, dona de seus desejos e de seu direito de ser respeitada:
Outra Nega Fulô

O sinhô foi açoitar a outra Nega Fulo
Ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia,
A blusa e se pelou
O sinhô ficou tarado,
Largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar,
Pegou um pau e sampou
Nas guampas do sinhô
Essa Nega Fulô !
Essa Nega Fulô !
Dizia intimamente o velho Pai João
Pra escândalo do bom Jorge de Lima,
Seminegro e cristão
E a mãe preta chegou bem cretina
Fingindo uma dor no coração
- Fulô ! Fulô ! Ó Fulô !
A sinhá burra e besta perguntou
Onde é que tava o sinhô
Que o diabo lhe mandou
- Ah ! Foi você que matou !
- É sim, fui eu que matou –
Disse bem longe a Fulo
Pro seu nego, que levou
Ela pro mato, e com ele
Aí sem ela se deitou
Essa Nega Fulô !
Essa Nega Fulô ! (CADERNOS NEGROS)