Violência emocional não resulta na morte do corpo, mas na morte da alma

04/01/2010 21:24 - Raízes da África
Por Arísia Barros

Os seios ainda eram só um desenho, púberes não dizia sua idade, entre 10 e 13 anos. Talvez menos ou mais. Independente da idade exata das personagens a cena era surreal. Menina ainda abraçava com lascívia e senso de sexual pertencimento o corpo de menino quase da mesma idade. Eram dois corpos cobertos de farrapos. Ambos negros. Ambos franzinos. Ambas as crianças envoltas em sono acompanhado pelas últimas estrelas incensadas com a eufórica irmandade do primeiro dia do ano. Ano novo!
Ali entrelaçados na vegetação de um grande hotel local como se adultos fossem, eles se pertenciam e se protegiam. E eram invisíveis. Crianças negras, em muitas e muitas situações não são sujeitos de direitos e, por vezes, nem mesmo de piedade.
Era grande o circular de transeuntes uns ainda na virada da festa, outros em caminhadas matinais traçando planos e sonhos para o ano nascido a pouco.
Muitos passantes que literalmente atravessavam a rua com a marcha costumeira da indiferença contemporânea, observavam a realidade focada neles próprios e seguiam adiante.
Crianças e adolescentes negros expostos as cancelas sem proteção das ruas, são nossos semelhantes?
No desconexo do sono ali embaixo do sol quase escaldante, das 6 horas da manhã,na praia de Jatiúca, em Maceió, ela se apertava ao corpo dele na busca de agasalho. Era o primeiro dia de 2010, mas para eles não houve o brinde com sidra do feliz ano novo.
Apesar do cenário do dia universal da paz não combinar com a pressa contemporânea, a pressa ali se fez como a impor a distância não comprometedora com os materiais expostos na grama do hotel; adolescentes,negros,pobres e descartáveis.
O caos do abandono da nossa infância abre lugar para tradução de uma realidade marcada pela indiferença estrutural, ausência de valores e o individualismo nosso de cada dia.
A história do abandono da infância e adolescência das duas crianças negras, sexualmente adultas e de milhares de outras é um retrato sufocante do mundo contemporâneo marcado por um modo de produção excludente, de concentração de renda,racismo, e, conseqüentemente das tramas do poder.
Crianças condenadas a incorporar eternos personagens coadjuvantes na escala das prioridades sociais. Crianças que sofrem com a ausência da família, de condições mínimas de sobrevivência, a perspectiva de futuro.
Segundo Bruce D.Perry “a mais destrutiva das violências não quebra ossos, mas quebra as mentes. Violência emocional não resulta na morte do corpo, mas na morte da alma”.
Muitas almas infantis continuam a ser violentadas. E o que cada um de nós tem feito para desarmar os preconceitos e aproximar nossos e novos passos para inventar um final feliz para as histórias reais das crianças sem infância?

 

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