Após anos de judicialização, altos custos e incertezas para famílias de pacientes com epilepsias graves, Alagoas dá um passo histórico na política pública de saúde. Pela primeira vez, o estado regulamenta o uso terapêutico do canabidiol (CBD, no Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo acesso gratuito e com respaldo técnico à substância.
A iniciativa se concretiza com a publicação, nesta terça-feira (1º), do primeiro Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para o uso de canabidiol no tratamento de epilepsias farmacorresistentes.
Elaborado pela Secretaria de Estado da Saúde (Sesau/AL), o documento define critérios clínicos para prescrição, monitoramento e fornecimento da medicação, estruturando o cuidado dentro da rede pública de saúde.
A medida atende à Lei Estadual nº 8.754/2022 e define critérios rigorosos para prescrição e acompanhamento da substância em pacientes com síndromes epilépticas graves como Dravet, Lennox-Gastaut e Esclerose Tuberosa.
A publicação do protocolo representa um avanço inédito no estado e, segundo o médico Freddy Seleme Mundaka, especialista em aplicações terapêuticas de derivados da Cannabis e fundador do Instituto Mundaka, é um divisor de águas na abordagem pública das epilepsias refratárias.
“É a passagem de um acesso desorganizado, baseado em liminares judiciais, para uma política pública estruturada, baseada em evidências científicas e focada na segurança do paciente”, afirmou.
Fim da judicialização e início de uma política pública estruturada
Atualmente, 31 pacientes em Alagoas utilizam o canabidiol por meio de decisões judiciais que obrigam o estado a arcar com os custos, muitas vezes com recursos sequestrados diretamente da Sesau. O novo protocolo elimina essa dependência da judicialização e oferece uma diretriz oficial e técnica, com critérios clínicos claros e monitoramento contínuo.
De acordo com o documento, o tratamento será destinado exclusivamente a pacientes com diagnóstico comprovado das três síndromes listadas, que apresentem quatro ou mais crises convulsivas por mês, mesmo após o uso adequado de ao menos dois anticonvulsivantes. A prescrição deve ser feita somente por médicos com especialização em neurologia, neurocirurgia ou neuropediatria.
Para Mundaka, esse passo representa o reconhecimento formal, pelo poder público, do valor terapêutico do canabidiol. “É uma validação científica e institucional do que muitos médicos e famílias já sabiam na prática: que o CBD pode transformar a vida de pessoas com crises epilépticas intratáveis”, destacou.
O protocolo estabelece ainda a dosagem inicial de 2,5 mg/kg/dia, com aumento gradual até 20 mg/kg (25 mg/kg nos casos de esclerose tuberosa). Os produtos devem ter teor de THC inferior a 0,2%, conter apenas canabidiol isolado e possuir autorização da Anvisa, conforme a Resolução RDC nº 327/2019.
“Ter protocolos padronizados com dose escalonada, produto com origem controlada e respaldo regulatório dá aos médicos segurança para prescrever e aos pacientes maior eficácia no tratamento. É medicina baseada em evidência, aplicada com responsabilidade”, explica.
Além da prescrição, o documento exige a assinatura de um termo de esclarecimento e responsabilidade pelos pacientes ou responsáveis legais, informando sobre os possíveis efeitos adversos e a vedação de repasse do medicamento a terceiros.
Monitoramento contínuo e impacto na qualidade de vida
Outro pilar importante do protocolo é o acompanhamento rigoroso dos pacientes, especialmente nas primeiras semanas de uso, quando podem surgir reações como sonolência, diarreia, perda de apetite e alterações nas enzimas hepáticas. A permanência no tratamento dependerá de uma redução de pelo menos 30% nas crises epilépticas em até seis meses.
O especialista destaca que esse critério é decisivo para avaliar o sucesso terapêutico. “Para quem convulsiona várias vezes por dia, reduzir um terço das crises já é uma revolução na qualidade de vida. Isso significa menos internações, mais desenvolvimento cognitivo, melhora na interação social e menos sofrimento para a família.”
Além disso, a expectativa é que o protocolo reduza o impacto financeiro, emocional e logístico para as famílias que hoje buscam tratamentos em outras unidades da federação ou por vias judiciais. “A partir de agora, o acesso será garantido dentro do SUS, com equidade, acompanhamento médico e responsabilidade clínica”, afirma.
O novo protocolo também prevê capacitação contínua para médicos da rede pública, que serão treinados sobre o sistema endocanabinoide e o uso terapêutico do CBD. Essa medida responde a uma lacuna histórica nos currículos de medicina.
“A maioria de nós não aprendeu nada sobre endocanabinoides na faculdade. A formação permanente é essencial para que a prescrição seja feita com segurança e consciência. Capacitar é proteger o paciente e qualificar o cuidado”, reforça o médico.
Outro destaque do documento é o compromisso com a revisão periódica das diretrizes a cada dois anos, ou antes, caso novas evidências científicas surjam. “Isso torna o protocolo um instrumento dinâmico, que pode evoluir junto com a ciência. É o que chamamos de protocolo vivo — algo que se adapta, cresce e se aprimora”, completa.
Incentivo à pesquisa local e referência nacional
A criação do protocolo também abre caminho para o desenvolvimento de pesquisas clínicas em Alagoas. O monitoramento sistemático dos pacientes permitirá a construção de um banco de dados sobre segurança e eficácia do CBD em nossa população.
Segundo o médico, isso pode posicionar Alagoas como protagonista nacional. “Vamos produzir dados de mundo real, com base em nossa realidade social e clínica. Isso fortalece a ciência, contribui para o conhecimento internacional e ajuda a ajustar o próprio protocolo no futuro.”
Para além das epilepsias, a iniciativa pode inspirar a expansão do uso medicinal da Cannabis para outras doenças neurológicas e condições crônicas, como dor refratária, autismo e esclerose múltipla, que já estão sendo debatidas em esferas técnicas e políticas.
“O protocolo é um modelo de cuidado integrado, que articula assistência farmacêutica, especialidade médica e acompanhamento clínico. Ele pode virar referência para outras áreas e servir de base para novas políticas públicas em saúde complexa”, conclui o especialista.