Ele existe, eu não tenho dúvida nenhuma, em todas as áreas da atividade humana. É impossível negá-lo, ainda que não se possa defini-lo com exatidão. O acaso apronta, não respeita pai nem mãe e pode nos levar ao pico da glória ou ao fundo do mais escuro poço, aquele em onde só os tolos não temem ir.

Se somos sempre impotentes diante dele, isso não nos tira a responsabilidade pelo que fazemos ou fizemos, mesmo que só nos reste, algumas vezes, argumentar com a nossa boa intenção, aquilo de que “o inferno está cheio” – como gregos e baianos dizem desde os tempos imemoriais. 

Já contei, aqui mesmo, o quanto me incomoda ouvir depoimentos de pessoas que se safaram de grandes tragédias e atribuem a Deus a preferência por salvar alguns e condenar outros à própria sorte, que, no caso, rima com morte. É duro demais para os afetos dos que se foram e cabotino sem medidas para quem ficou. Não dá para aguentar ouvir alguém julgar-se merecedor do benefício negado a dezenas de outros humanos, em tudo iguais.

Ou seja: o acaso também tem duas caras e as usa ao mesmo tempo - boa para alguns e terrível para outros. Fato concreto é que ninguém deve esperar dele qualquer consideração ou preferência. Digamos que ele é desses tipos que não fazem amizade com ninguém – nem inimizade. 

Engraçado é que muitas vezes ele nos parece óbvio. O problema é que isso só acontece depois do ocorrido, quando de nada vai adiantar dizer: - Bem que eu sabia! Sabia nada, bobão. Embora onipresente, o “sujeito” se mantém oculto, invisível, quem sabe se divertindo às nossas custas, como a criança que se esconde atrás da porta segurando o riso ao antever o resultado do susto que vai pregar em alguém. 

E nem pense em difamá-lo, em amaldiçoá-lo, xingá-lo ou prometer vingança. Assim como a mentira, a poderosa senhora que nunca abandonou a morada na alma dos homens, ele usa muitos disfarces. Aprendi a respeitá-lo e a não maldizê-lo, para que possamos ter uma convivência adulta e civilizada. 

O que isso significa na prática?

Assim como não o culpo pelo que de ruim acontece, também não lhe nego os méritos, em parceria, que alcançamos (estou bajulando, não é?). E até reformulo, como paráfrase, um bem conhecido dito que se tornou bastante popular:

- A César o que é de César; ao deus do acaso o que dele é, tão somente.

Vejam que exemplozinho interessante, prova incontestável da existência do acaso, que há de mexer com a memória de muitas gerações que vibraram mais que sofreram com o chamado “escrete canarinho” na inesquecível jornada do México. O ano era o de 1970 e eu acompanhava ao vivo a minha primeira Copa do Mundo. No dia da decisão contra a Itália, a que assisti - juro - num televisor instalado no meio da rua de chão batido da Buarque de Macedo, “onde hoje os carros cortam com a mesma velocidade da vida”.

A partida estava 3 a 1 para o Brasil quando o “gênio da raça” rolou com só aparente displicência a bola para o lado direito do ataque da nossa seleção, rente à grama, no exato instante em que o Capita se apresentava com a precisão  de um balé ensaiado à exaustão, um número de trapézio circense em que a diferença de um átimo de segundo pode significar a morte.

Os três dedos que Carlos Alberto Torres usou para atacar a bola bateram exatamente no único lugar em que ela, a redonda, poderia ganhar o destino inexorável da glória. 

O que o nosso eterno capitão disse numa mesa de bar a Ronaldo Bôscoli, grande paixão de Elis Regina (que havia prometido homenagear o Capita após a Copa, dando seu nome ao filho que foi batizado de João Marcelo)?

- Ronaldo, dei uma tremenda sorte, rapaz. Na hora exata em que me preparei para dar um chutão, a bola levantou um palmo, certinho. Se sobe mais um pouco, dava de canela e a bola ia quebrar o placar do estádio.

Diante da confissão, Albertosi, o goleiro da Itália, bem que poderia acusar o acaso de cumplicidade com Carlos Alberto Torres.  Sendo italiano, porém, de tantas tradições religiosas, inclusive politeístas, não me espantaria se ele apontasse o dedo para os deuses do futebol e perguntasse: 

- Por que ele e não eu?