Seria insuportável, para qualquer um de nós, conviver com as lembranças permanentes de tudo o que passamos. A nossa memória, sabiamente, é seletiva e criativa. Trabalha em aliança indissociável com o esquecimento, para que possamos continuar vivendo em um território de razoável paz.

Uma memória que não se refaz, não se reinventa, condena o seu dono a fincar-se no passado. E se o cotidiano é feito, quase sempre, de coisas tolas, acontecimentos banais, recolhidos passivamente ao diário do esquecimento, por que não mandar para lá, também, as grandes dores? 

Que elas permaneçam adormecidas, sem nos prender no chão do tempo, por onde deveríamos passar sem deixar marcas que nos denunciassem à infelicidade.

É claro que isso nem sempre é possível, apesar de muito necessário.

Li, num site internacional, que um jovem britânico de 20 anos sofre de uma síndrome rara, denominada hipertimesia, que o faz lembrar-se de todos os momentos da sua curta existência, não permitindo que ele esqueça absolutamente de nada. O que comeu, o que fez, o que sentiu em cada um dos seus dias, tudo está registrado na sua memória de forma indelével.

Pobre coitado, penso eu.

Uma memória que se preze há de nos revelar sempre os bons momentos, as alegrias, e nos “esconder” os fatos dolorosos, deixando-os armazenados apenas no nosso diário do esquecimento. Este, de quando em vez, infelizmente, se abre em páginas nítidas e vibrantes, que esperávamos terem sido destruídas por combustão espontânea. Mas que as grandes dores fiquem por lá, amainadas, enevoadas, faces sem contornos definidos, a se exibirem apenas ao romper dos grilhões a que foram condenadas. 

É verdade que todos nós valorizamos o que é agradável na vida pelo comparativo: os dias de chuva são bons porque há tantos, também, de sol – e por aí segue. Mas que dispensemos, se assim conseguirmos, o que nos foi um mal demasiado. 

O que será a mais pura verdade naquilo que lembramos? Desconfio que tanto quanto nos esquecemos, ainda que involuntariamente. A proporção, aqui, é arbitrária, como há de ser a própria memória.

Tudo bem. Que ela seja, porém, parceira do seu dono, entendendo-se com o esquecimento e buscando o caminho do meio, o que me parece bem mais razoável. 

Afinal, esquecer também é viver.