E de repente, a mesa vazia que bem cabem oito pessoas se limitou a ocupar a metade, exatamente no instante em que o sol do domingo se desvanece. O domingo da ilusão, do futebol e do resultado indigesto. Como o cigarro, torcer para o glorioso de General Severiano pode causar danos à saúde. Mas, como dizia o velho sábio: sem paixão não dá nem para chupar um picolé.

Elas chegaram em boa hora, mas traziam no olhar um vácuo encompreendido, daqueles que se notam a léguas de distância. A amizade, esta coisa que ninguém explica como acontece, e de repente acontece, pode justificar-se pelas dores ocultas em comum, e não apenas pela cosmovisão ou valores singulares. Eu tinha ouvido falar e abundei: se para ser amigo de alguém eu precisasse concordar com tudo o que ele faz ou pensa eu não seria amigo nem de mim mesmo.

Coloca uma canção, tira, coloca-se outra e mais outra. Essa não presta. Essa presta, mas é melhor na voz de fulano. Eu prefiro na voz de beltrano, diz a outra, que fora incompreendida pela outra. Aumenta o som, pois a cerveja na medida em que a consumimos vamos perdendo a audição. O que seria de nós sem a cerveja e as diferenças, fico a pensar, enquanto me resumo a pensar, já que novamente ela - a cerveja - além de as deixarem surdas, ainda as deixam tagarelas, como se estas tivessem sido fabricadas com água de chuva de janeiro. Eis uma grande oportunidade para cerrar os lábios, observar e aprender com gente mais antiga do que eu.

Daquela em que por nove meses morei dentro dela eu já sabia: ficou sem pai quando ainda tinha 5 anos. Raramente contava-nos coisas a seu respeito. “Curava os enfermos”. “Era comerciante do ramo farmacêutico”. “Lembro-me dele treinando tiro no quintal com o braço saudável, pois o outro e o de uso habitual, tinha levado chumbo e estava imobilizado”. Naqueles tempos, matava-se mais gente por motivação política do que por defesa a honra.

Da mais reservada entre elas veio a ideia de confessar a orfandade. Assim, do nada! Não se sabe exatamente como o assunto veio à tona. Enquanto nos contava peculiaridades sobre ele, seus olhos distantes brilhavam ruborizados. Se é que é possível olhos ruborizarem-se. “Foi trabalhar em São Paulo e nunca mais ouviu-se falar dele”. Nas cartas, alagadas de afeto, deixava claro que um dia retornaria e, por esta razão, desconfiava-se que podia ter sido morto por algum patrão ambicioso ou sabe-se lá de que. “Além de cartas ele também nos mandava uns trocados”. Ela tinha 12 anos quando o viu pela última vez e falava com amor nos lábios e doçura na voz.

- E o seu pai? Eu mesmo fiz questão de perguntar, para descartar a melancólica coincidência. Sequer o conheci, ela respondeu na bucha, sem a mínima empatia ou remorso. Sou filha só de mãe, completou com ar de indiferença, entre um arremesso e outro de copo. – Não tem curiosidade em saber de onde ele veio? Sua origem? Linhagem? Seus antecedentes? Não ligo para essas bobagens e nem sofro por gente que não conheci. A noite findou e eu não vi nem uma delas lamentarem a orfandade precoce ou transferir responsabilidades presente para os traumas do passado. Uma lição profícua para quem testemunha uma geração que faz justamente o contrário. Santo domingo da ilusão!

 

Crônica – Jeno Oliveira

Maceió, 28 de novembro de 2023.